A Partidocracia

A PARTIDOCRACIA E O SEU PAPEL NAS DEMOCRACIAS LIBERAIS CONTEMPORÂNEAS

O diagnóstico do problema

“O povo inglês julga-se livre, mas engana-se muito. Pois só o é durante a eleição dos membros do Parlamento; assim que estes são eleitos, torna-se escravo e não é nada.”

Jean-Jacques Rousseau (Contrato Social)

Resumo: Oartigo começa por procurare atingir uma definição de partidocracia suficiente para operacionalizar o conceito, que tão pouco tem sido utilizado, partindo de seguida para aferir o que o regime de partidos significa e que papel representa no marco das democracias liberais contemporâneas, concluindo por entender que se trata dum regime bem sedimentado nas sociedades de democracia liberal, apoiado como tal quer pela própria classe política, que dele beneficia, como as próprias oligarquias económico-financeiras a quem, em última análise, serve os interesses.

Abstract:  The article begins by seeking and achieving a definition of partycracy that is sufficient to operationalize the concept, which has so little been used, and then proceeds to assess what the party regime means and what role it plays in the framework of contemporary liberal democracies, concluding by understanding that it is a well-established regime in liberal societies, supported as such both by the political class itself, which benefits from it, as well as the economic-financial oligarchies whose interests ultimately serve.

Palavras chave: Partidocracia, elitismo, democracia liberal, partidos políticos, poder político, soberania popular, dominação.

Introdução

O termo “partidocracia” constitui um neologismo que, tanto quanto se sabe, só começa a aparecer depois da II Guerra, e representa a situação gerada por uma suposta dominação dos partidos políticos sobre o sistema político de um país. A ideia é que os partidos políticos têm uma influência excessiva sobre as decisões tomadas pelos governos e pelas instituições democráticas, muitas vezes em detrimento dos interesses dos cidadãos comuns, constituindo assim um verdadeiro obstáculo ao exercício da soberania popular nas sociedades onde se verifica, ou seja, no caso do nosso estudo, nas democracias liberais da atualidade (e das últimas décadas).

“In a particratic regime, both the legislative and the executive are dependent on party organization for their electoral support, as well as for recruitment of the political class. This means that the people sitting in both governmental branches are party people in first place, and legislative or executive officers only as a result of their party’s choice. Party is, therefore, the place where the fusion of legislative and executive power takes place” (Calise, 1994).

Reconheça-se que, em termos de estado da arte, o tema não é particularmente abordado e a literatura não é abundante, estando principalmente concentrada em artigos científicos – muito mais do que obras de fundo – em temáticas de revistas e teses de mestrado, um pouco arrastado pela pressão que se vai, lentamente, sentindo cada vez mais presente na opinião pública, a qual vai conseguindo identificar como causas do afastamento popular das instituições políticas democráticas e a sua aversão à classe política, o hermetismo dos partidos políticos, o seu papel antidemocrático, a corrupção endémica e o repúdio pela “intromissão” do protagonismo popular diretamente na política, que estes julgam reservada aos “eleitos”, leia-se, as elites partidocráticas.

O objetivo do artigo é, em primeiro lugar, determinar, tanto quanto possível uma definição de partidocracia (o regime de partidos políticos), abrangente, curial e enquadrável em todas as situações em que existe, designadamente nas democracias liberais contemporâneas, uma vez que fora delas não parece existir enquanto tal. Partidocracia e democracias liberais parecem surgir sempre de mãos dadas. Em segundo lugar, é também objetivo do artigo determinar até que ponto, como cada vez mais se pressente e afirma, a partidocracia representa, no marco das democracias liberais das últimas décadas e da atualidade – aliás, com crescente relevância e repercussão – um obstáculo ao exercício do poder popular e, até, como um importante papel – talvez formalmente o mais importante – na  sonegação desse mesmo poder e, sobretudo, prosseguir um objetivo como instrumento de manutenção e reprodução dos regimes democrático-liberais, de modo a impedir a sua morte e a permitir que se mantenham enquanto regimes elitistas de matriz de dominação dos povos, em benefício dos agentes e principais protagonistas desses regimes. O artigo tentará aflorar ainda a demonstração da seguinte hipótese: a partidocracia representa hoje o principal pilar quer de apoio dos regimes democráticos-liberais, quer de produção da sua ideologia, a qual, por sua vez, tem vindo a assumir, de modo cada vez mais evidente, um cariz de capitalismo neoliberal. 

A investigação do tema em análise foi desenrolada ao longo das últimas décadas, quer através da observação direta de várias sociedades de democracia liberal, quer de leituras sistemáticas sobre o tema, algumas delas (as mais importantes e consistentes) constantes das referências bibliográficas, quer de tantas e tantas outras mais ligeiras e menos aprofundadas, constantes de artigos de revistas, jornais, redes sociais, “media”, etc., bem como, evidentemente, intermináveis debates, conversas e conferências sobre o assunto e as suas conetividades.  Foi, portanto, indutivamente que desenvolvi a elaboração do presente trabalho. Segundo Lakatos e Marconi (2003, p. 86), “a indução é um processo mental por intermédio do qual, partindo de dados particulares, suficientemente constatados, infere-se uma verdade geral ou universal, não contida”. Abordei o tema, em artigos de jornal, pela primeira vez, há cerca de quarenta anos e, de então para cá, não tenho parado de ler sobre o assunto, de escrever, debater e, sobretudo, de tentar sistematizá-lo. Esta será a primeira abordagem escrita mais sistematizada sobre o tema, do qual, aliás, pretendo fazer o epicentro da minha futura tese de doutoramento, embora alargado a uma proposta normativa de solução.

A – PRIMEIRA PARTE – o conceito

I – A partidocracia: breve enquadramento

A crítica da “partidocracia” concentra-se fundamentalmente na ideia de que os partidos políticos são movidos por interesses próprios e que os políticos (“partidocratas”) colocam os interesses de seus partidos acima dos interesses da sociedade como um todo, levando consequentemente a uma falta de responsabilidade e transparência no governo, bem como a uma diminuição da confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.

Lentamente, o tema tem vindo a ganhar dimensão, sendo hoje, no final do primeiro quartel do atual século, uma crítica comum, cada vez mais utilizada por aqueles que, fora do sistema partidário, em todas as bandas do espetro político, têm vindo a assinalar na partidocracia – o sistema de hegemonia de partidos políticos – a causa de muitos dos males das democracias liberais, com os mais diversos fundamentos, da direita à esquerda, desde os que atacam a própria democracia em si, até aos que alegam considerá-la manifestamente insuficiente e a pretendem aprofundar. E os cidadãos que se autoexcluem dos sistemas partidários são visivelmente cada vez mais, bastando para tanto uma análise perfunctória das redes sociais e das opiniões dos seus protagonistas e um vislumbre de relance sobre as taxas de abstenção nos processos eleitorais dos países de democracia liberal.

O caso português é paradigmático. É difícil nas redes sociais encontrar alguém alinhado com os partidos políticos e os sistemas partidários, e a taxa de abstenção vem subindo paulatinamente, ao longo dos últimos 50 anos de processo democrático-liberal, sempre sustentadamente, com um único ligeiríssimo recuo nas últimas eleições legislativas de 2022. De uma taxa de abstenção de 8,5% nas primeiras eleições legislativas pós-Revolução de Abril, atinge-se um pico de 51,4% em 2019 (tornejando portanto o ponto crítico dos 50%), entre os cidadãos residentes (a esmagadora maioria do colégio eleitoral), sendo o panorama ainda pior entre os não residentes, em que o pico atingiu quase noventa por cento (Pordata,https://www.pordata.pt/db/portugal/ambiente+de+consulta/tabela). Se a estes números se juntarem os dos votos nulos e brancos, cujo sentido é ainda mais manifestamente antissistémico, o resultado ainda é mais significativo.

A situação portuguesa não é muito diferente das outras democracias liberais.

Desta situação só se pode tirar uma conclusão: os sistemas políticos das atuais democracias liberais vivem uma profunda crise de legitimação. Uma democracia cujo poder político se forma a partir da participação – e mesmo assim tímida e afastada, por interposto meio – de menos de metade da sua cidadania, não é seguramente um regime legitimado. Supostamente e teoricamente, não é para isso que foi feito.

Suposto era que as democracias representativas “representassem” o soberano, ou seja, o povo.

Esta crise de legitimação é patente já há algumas décadas. Sobre ela debruçaram-se inumeráveis autores e escreveram-se provavelmente dezenas de milhar de páginas, senão centenas de milhar. Mas não é esse o objetivo deste artigo. Assumamo-lo como dado adquirido e partamos, mais modestamente, para uma tentativa de definição do termo “partidocracia”.

II- A partidocracia: composição e natureza

“O termo “partidocracia” reflete esse estado de coisas, gostemos ou não, vale dizer, uma situação na qual quem toma as decisões em última instância não são os partidos como mandantes imperativos dos chamados representantes, aos quais dão “instruções” no sentido pejorativo que a palavra sempre teve na boca dos fautores da representação política em oposição à representação dos
interesses. Falo de “partidocracia” sem qualquer malícia, dado que nesta palavra, não obstante a habitual conotação fortemente negativa, está contida uma realidade de fato incontrovertível. A soberania dos partidos é produto da democracia de massa, onde “de massa” significa simplesmente com sufrágio universal. A democracia de massa não é propriamente “cracia” da massa, mas é a “cracia” dos grupos mais ou menos organizados nos quais a massa, por sua natureza informe, articula-se, e, articulando-se, expressa interesses particulares.” (Bobbio, 2000, p. 470 – 471).

E desta intervenção de Bobbio começamos já a delinear três elementos que não poderão deixar de constar dessa definição: o partido como agremiação associativa política com vista à conquista e ao exercício do poder político, a mediação (obrigatória, de direito ou de facto) entre o povo e o poder político e o monopólio, ou quase-monopólio, da representação política, de direito ou de facto.

“A partidocracia é uma forma de governo onde os partidos assumem um controlo monopolístico sobre o processo governamental, tal como os presidentes e os parlamentos é suposto fazerem no marco dos seus próprios regimes.” (Calise, 1994).

De novo os mesmos elementos, agora expostos mais sucintamente.

Vejamo-los um a um, um pouco mais detalhadamente.

  1. Os partidos políticos

Bonavides (2000), pág. 343 e sgs., define partido político como uma organização de pessoas que, inspiradas por ideias ou movidas por interesses, buscam tomar o poder e nele se conservar a fim de realizar os fins pretendidos. A definição é formal, mas suficiente para o que pretendemos.

Por outro lado, convém dizer que os partidos nem sempre foram como se prefiguram hoje. Como todas as outras instituições e organizações sociais, tiveram a sua evolução.

Em 1850, por exemplo, só nos EUA havia partidos políticos, pelo menos com a forma aproximada à que lhes conhecemos hoje. O mais frequente era uma espécie de clubes e associações de pensamento, grupos parlamentares, mas não propriamente partidos políticos (Duverger, 1970).

“Para este autor (Duverger), os partidos políticos tiveram origem, sucessivamente, na criação de grupos parlamentares, no surgimento dos comités eleitorais e, por fim, no estabelecimento da ligação permanente entre esses dois elementos (Costa, 2021).

Deixaremos para o desenvolvimento do artigo a análise deste tipo de evolução das organizações sociais, como os partidos políticos, designadamente o modo como se vão adaptando às circunstâncias.

  • A mediação

Uma das principais caraterísticas dos partidos políticos, nos sistemas eleitorais atuais, é a mediação entre o povo (suposto soberano) e o poder político. A esta caraterística usa-se vulgarmente chamar de “representação”, mas o termo “mediação” parece mais adaptado, uma vez que representa melhor o papel de interposição entre o soberano e o poder político, de modo profissional, organizado, estruturado, no qual o partido assume um papel central nos regimes partidocratas e a “representação” assume um papel claramente formal e secundário.

O sistema eleitoral é o procedimento legal de conversão de votos em mandatos executivos ou legislativos (Nohlen, 1981, pág. 53).

“É o mecanismo regulado através de normas e procedimentos mediante o qual com eleições se obtém o total de mandatos a repartir entre os partidos políticos para a representação de cargos de eleição popular” (Rodríguez, Cardona e Pérez, 2015).

  • Obrigatoriedade e monopólio

Esta mediação, há já dezenas de anos, consolidou-se como obrigatória, numa grande maioria de países, sendo dum modo geral – como sucede em Portugal – conferido aos partidos políticos uma espécie de “alvará” para a participação eleitoral, sobretudo no que concerne ao núcleo central do poder político e sendo vedada essa participação aos cidadãos e organizações de cidadãos que não se insiram nas fileiras partidárias. Aliás, até mesmo os chamados “militantes de base” dos partidos políticos pouco ou nada representam nas decisões importantes dos mesmos, como também melhor se verá mais adiante.

Este caráter obrigatório (de direito ou de facto) confere aos partidos um verdadeiro monopólio sobre os sistemas eleitorais e, consequentemente, sobre, pelo menos, o núcleo central do poder político (parlamentos e governo), consistindo as democracias liberais em autênticos Estados de Partidos, ou partidocracias, na sua imensa maioria.

Atente-se que o afastamento da vida política por parte de imensas massas de cidadãos tem vindo a permitir que se vá dando alguma abertura neste processo, de modo a tentar responder à tensão criada e satisfazer o desejo de participação independente por parte desses cidadãos. Assim, em Portugal, por exemplo, há uns anos, foi alterada a lei no sentido de permitir, no nível autárquico, a apresentação de candidaturas independentes. O que tem resultado num imenso sucesso participativo, com muitas centenas de autarcas eleitos em listas de cidadãos, fora dos partidos – e muitas vezes contra eles – sendo de prever que o processo continue a aprofundar-se, até porque é muito recente.

III – Uma tentativa de definição

Ensaiemos então uma definição abrangente de partidocracia, antes de partirmos para a análise do seu papel nas democracias liberais contemporâneas.

A partidocracia será o regime político pluripartidário, presente na maioria das democracias liberais, em que os partidos políticos assumem uma ampla posição de mediação monopolista sobre os sistemas eleitorais, não permitindo (de direito ou de facto) que se apresentem candidaturas fora dos partidos, pelo menos no núcleo essencial do poder político (parlamentos e governos), conseguindo assim subtrair, na prática, ao soberano (o povo) um efetivo controlo permanente sobre esse mesmo poder, que teoricamente lhe deveria pertencer.

Este regime confunde-se, na atualidade, com as próprias democracias liberais, com ligeiríssimas e muito pontuais e segmentárias exceções, como é, com mais consistência, o caso suíço, e, mais pontual e segmentariamente, os casos, por exemplo, dos processos constituintes islandês e chileno, entre outros.

Em todas as restantes democracias liberais, já há algumas décadas, os regimes são, na sua ampla maioria, partidocratas, para efeitos práticos, ainda que, aqui ou ali, como no já referido caso das autarquias em Portugal, possa haver concessões que não põem em causa a substancialidade do domínio monopolista dos partidos sobre o poder político. Ambas as formações políticas são duas faces da mesma moeda. Mesmo aqueles países em que é permitida, segmentariamente, a apresentação de candidaturas independentes dos partidos políticos, de direito, de facto os partidos exercem um quase-monopólio sobre os sistemas eleitorais.

Os regimes partidocratas são, portanto, substancial e verdadeiramente, regimes elitistas, de dominação das massas por elites – oligárquicas, políticas, religiosas até – os quais se revestem duma aparência democrática formal, mas a qual não confere a soberania ao soberano, como melhor adiante se verá.

B – SEGUNDA PARTE – o papel da partidocracia nas democracias liberais

IV – O darwinismo das organizações sociais

“(…) os partidos, a partir de certo grau de autonomia, têm tendência a se constituir como fontes de poder próprio, lugares de assalto e potencial lotização do próprio Estado.” (Lourenço, 1991). Esta tendência de que falava Eduardo Lourenço, já em 1991, para falar verdade, era muito mais do que uma tendência, era uma matriz, mesmo na jovem e então ainda de menor idade, democracia portuguesa.

“É à degenerescência mas degenerescência eficaz em termos de confiscação e manipulação da vontade popular (…) que se chama partidocracia”, continuava o mesmo autor, para logo de seguida acrescentar, sempre no mesmo texto: “A Democracia é um círculo vicioso quando o cidadão abdica por simples rito a sua responsabilidade nas mãos alheias para que elas exprimam, reforcem e deem vida à mesma Democracia. No fundo, o que é o fenómeno da “partidocracia” senão a quintessência dessa abdicação?”.

As afirmações transcritas de Eduardo Lourenço são lapidares para a análise que nos propomos.

As organizações sociais – e os partidos políticos são organizações sociais – como acima já aflorámos, estão sujeitas a mecanismos evolutivos em muito semelhantes aos da evolução biológica, embora também em muito dissemelhantes. O valor adaptativo das suas mutações – casuais ou provocadas – afere-se pela eficácia dos seus resultados. A teleologia deste processo, quer no mundo biológico, quer no social, é sempre o mesmo: sobreviver e reproduzir-se, tão eficazmente quanto possível. Sem querer entrar na discussão deste tema, totalmente afastado do âmbito deste artigo, não posso contudo deixar de referir este aspeto para que se compreenda como os partidos e o regime que segregaram, foram evoluindo até às formações atuais em parte pressionados por estes movimentos adaptativos.

V – O primado do económico sobre o político

É sabido que o liberalismo tem duas faces: uma enorme e desmedida, que é a económica, e outra muito menor e mais discreta, que é a política.

 A democracia liberal é uma estrutura política capitalista e, como tal, oligárquica. O Estado da democracia liberal é um Estado dessas oligarquias, por mais que se complexifique e especialize e gere contradições tensíssimas pelo poder alcançado pelas massas nas sociedades atuais. É uma complexa instância de resumo das várias contradições existentes na sociedade, de várias classes e frações de classes, condensando-as e concentrando-as (Poulantzas), mas sempre sob a hegemonia dos beneficiários do sistema económico, estes ou aqueles ou todos em conjunto. E não se pense que essa solução hegemónica poderá alguma vez ser posta em causa, por via democrática, sem uma violenta reação desses mesmos beneficiários. Isso não existe e inúmeros exemplos históricos estão aí para o demonstrar, como sucedeu, por exemplo, no Chile de Allende. 

“A liberdade económica conduz a forte disparidade na distribuição dos recursos. Se se descurarem os limites e as correções que pode ser oportuno realizar contra o automatismo do mercado por razões de justiça social (…) é evidente que a disparidade dos haveres, na falta de qualquer intervenção, produz também fortes diferenças marcantes sob a égide da democracia política” (Flores d’Arcais, 1991).

Este poder do económico sobre o político, que dispensa apresentações, é uma realidade holística nas democracias liberais – e neoliberais – que assume uma capacidade de “persuasão” global, desde os “media” à corrupção, mais ou menos disfarçada, mas omnipresente, passando pelas intervenções ideológicas e culturais a todos os níveis, incluindo o ensino. 

VI – O processo de formação das partidocracias

É no marco da conjugação destas duas tensões – a evolução adaptativa e o primado do económico sobre o político – que se vai gerar o regime partidocrático, até àquilo que hoje conhecemos e que já vige há umas boas décadas, com natureza hegemónica, de direito ou de facto, em quase todas as democracias liberais da atualidade, apenas com as exceções acima indicadas, das quais somente a Suíça se pode considerar um caso estrutural.

Não quer dizer que outras forças específicas não joguem, ou tenham jogado, também, um papel na constituição das partidocracias da atualidade, mas são papéis menores, por vezes até papéis particulares, exclusivos duma realidade apenas, ou de algumas, com natureza por exemplo apenas de dimensão histórica ou cultural. As tensões indicadas são as predominantes e comuns a todos os regimes partidocratas, o que, como já se disse, é o mesmo que dizer comum a todas as democracias liberais.

As diferenças existentes no seio dos regimes partidocratas não são, portanto, diferenças fundamentais ou estruturais, mas apenas diferenças superestruturais, mormente, por exemplo, de natureza histórica ou cultural.

Utilizo aqui o termo “estrutura” no seu sentido comum, como o conjunto de peças fundamentais dum sistema, ou duma construção social, como é o caso. Digamos, em imagem, que a partidocracia é o esqueleto político das democracias liberais e esse esqueleto é muito similar entre todas elas, tal como o é entre os humanos, apesar das culturas poderem diferir muito.

Certo parece é que esse esqueleto aparece em todas as democracias liberais, com maior ou menor intensidade, maior ou menor aparato, discrição, etc., (as tais diferenças superestruturais), por vezes até pontuado por erupções antissistémicas de notável relevância, como os referidos processos constituintes chileno e islandês, uma ou outra exigência popular referendária, por vezes de forte impacto, como no caso do “Brexit” ou dos “Gilets Jaunes”, alguns quase míticos, como Maio de 68, outros que nem às páginas dos jornais chegam, mas todos eles eventuais e sem pôr em causa o regime partidocrático de forma consistente.

As partidocracias presentes nas democracias liberais, como se referiu, coincidem também, dum modo geral, com o impreciso conceito de “Ocidente”.

VII – A “Lei de Ferro das Oligarquias”

Há muito tempo – mais de um século – que os partidos políticos são alvo das mais diversas críticas, com as mais diversas intenções e os mais diversos fundamentos.

São muitas os autores que se pronunciaram sobre os partidos políticos e  críticas ao seu funcionamento e papel, nunca faltaram.

Não cabe aqui fazer sequer o levantamento sistemático dessas críticas – tantas delas baseadas na oposição à própria democracia e de apoio às elites “naturais” – cujo interesse poderá ser relevante noutro âmbito, como por exemplo o da história dos partidos políticos.

Mas creio que a referência à “Lei de Ferro das Oligarquias”, de Michels, é incontornável.

Convém começar por dizer que a teoria deste autor não se limita à classificação de partidos políticos, mas de todo o tipo de grandes organizações.

“A oligarquia, o domínio de uma sociedade ou de uma organização por parte daqueles que ocupam as posições cimeiras, é parte intrínseca de qualquer organização em grande escala. O homem moderno, segundo Michels, enfrenta-se com um dilema sem solução: não pode ter grandes instituições, tais como estados nacionais, grémios, partidos políticos ou igrejas, sem ceder o poder efetivo aos poucos que ocupam os cargos superiores dessas instituições” (Lipset,  1961, no prefácio duma reedição de “Partidos Políticos”, de Michels, 1979).

Resumidamente, Michels entende que a democracia é impossível nas sociedades complexas e que tal se deve a uma incontornável e insuperável fatalidade: as suas organizações básicas – os partidos políticos – na sua atividade gerarão sempre, por natureza, uma elite de poder interno que atuará sempre em função dos seus interesses próprios e dos dos respetivos partidos, e não dos seus eleitores ou sequer das bases desses mesmos partidos.

“Na designação de candidatos para as eleições, encontramos outro grave fenómeno oligárquico: o nepotismo. A escolha dos candidatos depende quase sempre duma camarilha (sic) formada pelos dirigentes locais e seus assistentes, os quais sugerem à massa os nomes adequados. Em muitos casos a bancada parlamentar é quase considerada como propriedade familiar.” (Michels, 1979, pág. 143). A atualidade deste trecho – escrito há mais de 110 anos – arrepia o menos sensível.

É impossível não reconhecer nesta obra uma intuição genial. Se Michels tivesse sobrevivido à II Guerra e sobretudo se tivesse chegado ao período do pós-colapso da URSS e ao domínio global do Império Americano, se tivesse mergulhado nas democracias liberais da atualidade, teria seguramente compreendido que, apesar de tudo e como ele manifestamente desejava (“Só um exame sereno e franco dos perigos oligárquicos da democracia nos permitirá reduzi-los ao mínimo, ainda que nunca possam ser de todo eliminados” Michels, op. cit., pág. 43), o pluripartidarismo que carateriza as democracias liberais partidocráticas permitiu, pelo menos (entre outras coisas) que os cidadãos possam escolher entre várias oligarquias e esse facto, por si só, já limita substancialmente o poder específico de cada uma, pela concorrência que entre elas institui.

Bem como teria confirmado que os partidos, esses, continuavam a comportar-se com poucas diferenças daquilo que tão bem retratou.

Contudo, e apesar do notável contributo desta teoria para o estudo da partidocracia, no âmbito deste artigo, como inicialmente anunciado, está apenas o diagnóstico da situação da atualidade, não só no nível político e partidário, mas ainda num nível superior, o que nos leva a passar para a tentativa de compreensão das razões que levam os beneficiários do sistema económico dominante – e os seus verdadeiros “donos” – a aceitarem e apostarem, como apostam, num regime que visivelmente tem tantas falhas, defeitos e perigos, muitos deles para esse mesmo sistema económico.

VIII – Um regime adaptado

A conclusão óbvia do quadro traçado é que a partidocracia representa, no seio das atuais democracias liberais, um sério problema a vários níveis, dos quais destacaremos:

  1. A sonegação duma parcela vasta, profunda e importante do poder político ao soberano (o povo), assumindo nas suas próprias mãos o poder alheio, abusando do mandato conferido e transformando aquilo que deveria ser um mero exercício da soberania, em representação, na própria soberania exercida em nome próprio;
  2. A consequente crise de legitimação que este processo significa e, logo, a descredibilização que infere para todo o regime político demo-liberal e, pior, para a própria democracia;
  3. Os novos tipos de oligarquias (a famigerada “classe política” de Mosca) que gera e que, por estarem particularmente expostas ao fenómeno da corrupção, transformando os partidos políticos em que mandam e desmandam numa espécie de “sociedades anónimas” ao seu serviço e das suas famílias e clientelas, “vendendo” o poder que exercem como se fosse seu, fazendo dele uma indústria, acabam por sobrepor essa situação de vantagem patrimonial própria aos interesses dos cidadãos e do Estado;
  4. A obstaculização que promovem ativamente – uma vez que dominam o sistema de produção normativa – à alteração deste “status quo”, transformando o processo num ciclo vicioso, donde parece não poder sair-se sem a utilização da violência, e portanto fora do quadro democrático, que manipulam no seu interesse;
  5. A utilização dos meios do Estado, que controlam e têm ao seu dispor, desde as instituições ao dinheiro, do pessoal ao aparelho repressivo, em prol da ideologia que segregam, no sentido de “travestir” a partidocracia como se de democracia se tratasse e assim convencer e enganar mais gente e conseguir manter e reproduzir o regime que os beneficia;

Com tantos problemas, vícios, obstáculos, corrupção, etc., a pergunta que se impõe é simples: porquê mantê-la, ainda por cima se para aqueles que beneficiam mais direta e intensamente do sistema económico hegemónico nas democracia liberais – e são portanto os seus principais interessados – o regime partidocrata significa um risco muito significativo, uma vez que coloca nas mãos  do povo a capacidade de eventualmente – o que já tem acontecido e ultimamente com alguma frequência (Brexit, p.e.) – acabarem a votar em partidos e caudilhos outsiders e antissistémicos e não afetos aos interesses das oligarquias hegemónicas, o que lhes pode causar situações difíceis de reverter, mesmo com a utilização massiva dos imensos e poderosos meios de persuasão que têm ao seu dispor (como os media, as redes sociais os meios financeiros inesgotáveis, etc.), situações essas que podem entrar em descontrolo e vir a provocar danos potencialmente irreversíveis aos regimes e, em última instância, aos sistemas económicos que obviamente pretendem salvaguardar, manter e reproduzir?

A questão não deixa de ser complexa, mas a resposta talvez a descomplexifique. Embora se divida por partes.

Mas comecemos por ouvir um texto exemplar sobre o tema.

“Os partidos eleitorais, um dos tipos que pode assumir a forma-partido, são o
instrumento chave do funcionamento da democracia liberal. Devemos
reconhecer-lhes alguma eficiência, já que essa tem sido, com razoável sucesso,
uma das políticas essenciais de preservação da ordem mundial.
A partidocracia, em especial na forma tão sonhada do sistema bipartidário,
permite absorver as tensões sociais de baixa intensidade dentro dos limites do
regime democrático, acenando com a sedutora alternância de poder. A
perspectiva da história ajudará a compreender a centralidade da democracia
para a dominação do Capital no último meio século. Na passagem do XIX para o XX, as necessidades políticas de legitimação da ordem capitalista, em especial na Europa, se elevaram diante da presença do proletariado como o novo e mais importante sujeito social da luta de classes.
Primeiro na Alemanha, com o sucesso eleitoral do SPD de 1890, e depois na
França, com um aumento da influência do Partido Socialista de Jaurès e
Guesde que levou Millerand à participação em um gabinete de coalizão na
sequência do affaire Dreyfus. O proletariado passou a ser capaz de expressar, na forma de um programa político para a sociedade, a defesa dos seus
interesses mais imediatos, e conquistou o direito de existência legal para seus
partidos (…).

Mas, a força de atração da democracia sobre os aparelhos políticos dos trabalhadores se demonstrou muito mais poderosa que a capacidade do sujeito social de controlar a sua representação política. Entre 1890 e 1905 ficou claro que a classe trabalhadora já tinha perdido a homogeneidade social do período
anterior para continuar realizando a sua representação somente através de um
só partido. O movimento operário se dividiu, irremediavelmente, em duas
alas principais: reformistas e revolucionários. Os primeiros se passaram definitivamente para o campo do regime democrático.
A perenidade da influência das alas reformistas nos trabalhadores dos países centrais repousa tanto nas conquistas sociais do passado, como nessa ilusão. Mas em condições“anormais”, quando se abre uma situação pré-revolucionária, toda a estabilidade do regime desmorona, porque os limites da partidocracia de
defesa da democracia são estreitos demais para conter a demanda social
reprimida. As massas passam a construir outras organizações e novas
direções. A fragilidade da democracia nos países da periferia é diretamente
proporcional à dificuldade de consolidar uma partidocracia poderosa como no centro.
Em conclusão: a consciência burguesa estratégica do perigo da revolução, a
partir da Comuna de Paris e, com mais intensidade, da Revolução Russa,
colocou a necessidade de fortalecimento do regime democrático. Em poucas
palavras: se a democracia surgiu das necessidades da revolução anti-aristocrática, só se consolidou a partir das necessidades da contra-revolução burguesa. O nazi-fascismo, no intervalo entre guerras, e seus derivados bonapartistas no período posterior, não foram nem a primeira, nem a única, nem a mais importante estratégia política do imperialismo moderno para derrotar a revolução política e social dos trabalhadores. A força histórica da democracia-liberal, ou as dificuldades da revolução proletária em derrotá-la, é uma das chaves para compreender os impasses atuais da luta pelo socialismo.”  (Arcary, S/D).

Embora o autor pareça isentar os “partidos do proletariado”, como lhes chama, dos males dos “partidos da burguesia” – o que, como vimos, na prática não acontece – parte da resposta à nossa questão – a essencial – fica dada. Mas vamos analisá-la.

  1. A burguesia, quando agitou a bandeira da democracia e dos princípios da “Liberdade-Igualdade-Fraternidade”, não estava propriamente a pensar no povo em geral, mas apenas num segmento privilegiado: em si própria.

O grito dirigia-se ao Ancien Regime e aos seus protagonistas, a aristocracia, mas não pretendia incluir o povo.

Mas rapidamente, logo no dealbar do séc. XIX, quando Bonaparte já se tinha encarregue de disciplinar o processo e dar início à implementação e disseminação dos regimes liberais – com tanto sucesso e brilhantismo – colocando no seu sítio aquilo que lá deveria estar (sobretudo o povo, mas também a aristocracia), se verificou que afinal o grito também servia para o povo, mas com outro objetivo: levá-lo a acreditar que era livre e igual (a Fraternidade ficaria para segundas núpcias).

Ou seja, num período em que tudo se iniciava, tornou-se imediatamente visível o papel fundamental que representaria, no contexto dos regimes liberais, a insistência nesta tecla: a democracia, ainda que se tratasse de mera ideologia, para produzir um logro eficaz. E produziu.

  • Os princípios e os valores não são, nem nunca foram, o forte da burguesia. O forte da burguesia é bem mais prosaico: negócios, dinheiro, interesses económicos. E este núcleo é bem mais sólido do que o dos princípios e, sobretudo, gera mais unidade. E esta cultura, que ainda hoje perdura nas oligarquias capitalistas, descendentes da burguesia na sua essência, por muitas que sejam as diferenças em aspetos secundários de classe, tem outra face intrínseca: a burguesia é uma classe pragmática, de poucos princípios, e portanto moldável, adaptável, que sabe bem distinguir o principal do acessório e que tem determinado o que é essencial. Nunca, na História, houve outra classe social tão adaptável e sobrevivente.

Poderia ser, assim parece, que rapidamente se deixasse cair em desuso as bandeiras revolucionárias de 1789. Mas o povo estava lá e tinha experimentado o gosto da Liberdade e da Democracia e rapidamente se lançou na defesa desses princípios que tão gratos lhe tinham soado.

Foi esta a solução triunfante, e que se mostrou ter maior valor adaptativo.

  • Se o povo queria liberdade e democracia, dava-se-lhe liberdade e democracia, mas evidentemente em doses homeopáticas e que nunca pusessem o sistema económico em causa. E foi assim, e com esta teleologia, que o processo se foi desenvolvendo, com cautela e parcimónia, primeiro votando só homens e ricos, com uma espécie de clubes no lugar de partidos, como atrás se viu, até que a luta de massas e a retumbante Revolução Russa (depois espalhada um pouco por todo o globo), forçou a burguesia a mais uma prova de adaptabilidade.
  • E ela não se negou. Respondeu em força, lançando sobre a mesa as democracias liberais, o sufrágio universal, a Carta dos Direitos do Homem, o Estado de Direito, o Estado de Bem-Estar, ao Estados constitucionais e toda uma vasta parafernália, de menor relevância, em função do vigor da luta popular e até, quando foi necessário, com umas vagas promessas de socialismo. A cartada foi jogada duma só vez e com efeito espetacular.
  • Estava criado e em força, hegemonicamente, o regime das democracias liberais. E, com elas, as partidocracias. Que, como resulta óbvio, representam o meio de mudar tudo, sem mudar o essencial. As partidocracias, impedindo que o regime saia das mãos de pequenos grupos elitistas, permitem uma muito maior manipulação das oligarquias políticas que as compõem, como vimos atrás, um muito mais eficaz controlo sobre os protagonistas, que ficam assim mais à mercê da influência das oligarquias que dominam o sistema económico, cujas propostas são, tantas vezes, “irrecusáveis”. Lidar com pequenos grupos que dominam os partidos é evidentemente muito mais fácil e eficaz do que com massas imensas que mudam todos os dias. O resultado tem estado, nas últimas décadas, bem à vista de todos. Os partidos, as partidocracias e os partidocratas foram-se moldando à “realidade”, centralizando-se, submetendo-se ao TINA (There Is No Alternative), lutando ferozmente entre si numa concorrência de vida ou morte pelos lugares de poder (e por pouco mais), de modo clubístico, cumprindo todas as profecias de Michels, praticamente sem outro objetivo que não ganhar as eleições que se seguem, a todo o custo, pouco se preocupando com os interesses do país e muito menos com os do povo. Concorrência essa que tem tão pouco de substancial, como de dedicada aos interesses populares. Uma está na razão direta da outra.
  • O sistema económico, que funciona razoavelmente por si só, desde que não o atrapalhem, produziu assim os 30 Gloriosos Anos de crescimento, que mais consolidaram este processo, mais centralizaram e “aburguesaram” as elites partidocratas (normalmente de origem social humilde, o que em princípio facilita a tarefa), as quais enriqueceram à vista desarmada, na razão direta daquela em que se desapegaram dos princípios dos seus programas, fossem eles de esquerda ou de direita. Os partidos socialistas e social-democratas passaram a neoliberais, os liberais, conservadores  e centristas também e, ultimamente, parece que a conversão se estenderá às novas formações da direita radical. É difícil escapar à “Lei de Ferro”.
  • E afinal revela-se que a partidocracia não é tão incompetente como parecia e que cumpre fielmente o seu papel ao serviço dos verdadeiros protagonistas do modelo de dominação económica hegemónico. E que estes ainda são menos incompetentes do que a partidocracia que geraram. Porquê, então mudar? Em mutação que vence, não se mexe.
  • E este modelo ainda funciona e ainda consegue, com ajudas, é certo, enganar muitos daqueles que por ele são seriamente prejudicados. Enquanto não for contundentemente posto em causa, ninguém o mudará e muito menos a classe política, que funciona como um bem pago feitor do sistema.
  • Pode portanto concluir-se que o regime partidocrático se mantém há tantas décadas, com relativa estabilidade, porque está alicerçado, quer na oligarquia da classe política, quer – e sobretudo – nas oligarquias económicas e financeiras, na sua qualidade de sustentáculos do sistema económico.

IX – Conclusão

O diagnóstico que nos propusemos fazer, ainda que perfunctória e brevemente, está feito, com falhas e omissões, seguramente, mas apontando, a nosso ver, os pontos principais do problema. Definiu-se um conceito de partidocracia, estabeleceram-se as bases principais do papel que representa no seio das democracias liberais contemporâneas e analisaram-se as razões que lhe permitem sobreviver e reproduzir-se, com êxito.

A forma de ultrapassar o problema e continuar esta luta incessante e multimilenar do povo pela recuperação da soberania perdida e outrora roubada, esse é um outro tema e, portanto, um outro artigo.

Bibliografia

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Revista Finisterra, n.º 8, primavera de 1991, Democracia ou Partidocracia? Direção de Eduardo Lourenço, citados os artigos de:

  1. ‘Classe Política e Crise da Representação’, págs. 15 a 23.
  • FLORES D’ARCAIS, Paolo, ‘O Eclipse da Democracia e os Intelectuais Conservadores’, págs. 57 a 79.

Bases de dados e sites consultados:

Pordata (Fundação Francisco Manuel dos Santos)

Youtube

Universidades de Évora/Açores, Évora, doutoramento em Teoria Política, Relações Internacionais e Direitos Humanos, trabalho na cadeira de Metodologia de Investigação em Ciência Política, maio de 2023.

José Carmona

A Transição da Partidocracia para a Democracia Popular

A TRANSIÇÃO DA PARTIDOCRACIA PARA A DEMOCRACIA POPULAR NAS DEMOCRACIAS LIBERAIS CONTEMPORÂNEAS

A terapêutica a aplicar

“Democracia é a forma de governo em que o povo imagina estar no poder.”

Carlos Drummond de Andrade

Resumo: Em primeiro lugar começamos porrelembrar a definição de partidocracia, alcançada em artigo anterior, para de seguida recordar a forma como a democracia popular das sociedades primitivas foi perdida, às mãos da Revolução Neolítica e do Estado de classes, para nunca mais, até hoje, ser recuperada.

De seguida, abordamos brevemente as experiências já existentes de revogação das partidocracias em democracias liberais contemporâneas, normalmente segmentárias, particularmente o caso das autarquias em Portugal e, após, o caso suíço, o mais significativo a nível mundial. É abordado também o caso recente em que se tentou, sem êxito, alterar a CRP e a lei eleitoral ordinária, em Portugal também, com vista a terminar com a partidocracia e a instituir as candidaturas de cidadãos ao parlamento.

Há ainda uma abordagem à forma de ultrapassagem da problemática partidocrática e, finalmente, a introdução da necessidade de acoplar ao fim da partidocracia uma série de instrumentos de democracia direta – particularmente o recall – com vista à construção da democracia popular, preparando o tema de ulterior artigo.

Abstract: In the first place, we begin by recalling the definition of partidocracy, reached in a previous article, and then recalling how the popular democracy of primitive societies was lost, at the hands of the Neolithic Revolution and the class State, never to return, until today, be retrieved.

Next, we briefly address the existing experiences of repealing party democracies in contemporary liberal democracies, usually segmental, particularly the case of local authorities in Portugal and, later, the Swiss case, the most significant worldwide. It also addresses the recent case in which attempts were made, withoutsuccess, to change the CPR and the ordinary electoral law, in Portugal as well, with a view to putting an end to party democracy and instituting citizen candidacies for parliament.

There is also an approach to how to overcome the partycratic problem and, finally, the introduction of the need to couple a series of instruments of direct democracy to the end of the party-democracy – particularly the recall – with a view to building popular democracy, preparing the topic of an ulterior article.

Palavras chave: Partidocracia, elitismo, democracia liberal, partidos políticos, poder político, soberania popular, dominação, democracia popular, populismo, democracia direta, recall, revogação de mandatos.

Introdução

Em artigo anterior sobre a partidocracia e o seu papel nas democracias liberais contemporâneas, não só adiantei uma definição deste regime de partidos, como tentei referir o papel de bloqueio propositado que representa ao exercício da soberania pelo povo – o soberano – e, por contrapartida, ao serviço da dominação das elites e oligarquias partidocráticas, económicas e financeiras e da manutenção e reprodução dessa dominação.

Neste artigo pretende-se ir um pouco mais longe e tentar apurar se é possível superar esta limitação no acesso do povo ao poder político, ao seu exercício e à sua legitimação e controlo, no marco dum processo reformista democrático.

E, sendo possível, qual o caminho a seguir e quais as alterações a introduzir na normatividade jurídico-constitucional e na ordem política para atingir o objetivo do aprofundamento da democracia e da devolução ao soberano da soberania que lhe pertence.

Reconheça-se que, em termos de estado da arte, o tema não é particularmente abordado e a literatura não é abundante, estando principalmente concentrada em artigos científicos – muito mais do que obras de fundo – em temáticas de revistas e teses de mestrado, um pouco arrastado pela pressão que se vai, lentamente, sentindo cada vez mais presente na opinião pública, a qual vai conseguindo identificar como causas do afastamento popular das instituições políticas democráticas e a sua aversão à classe política, o hermetismo dos partidos políticos, o seu papel antidemocrático, a corrupção endémica e o repúdio pela “intromissão” do protagonismo popular diretamente na política, que estes julgam reservada aos “eleitos”, leia-se, as elites partidocráticas

Se o tema do artigo anterior já tinha pouca literatura, este tem muito menos, uma vez que com dificuldade se encontram debatidas as formas de ultrapassar os bloqueios dos regimes partidocráticos.

A investigação do tema em análise foi desenrolada ao longo das últimas décadas, quer através da observação direta de várias sociedades de democracia liberal, quer de leituras sistemáticas sobre o tema, algumas delas (as mais importantes e consistentes) constantes das referências bibliográficas, quer de tantas e tantas outras mais ligeiras e menos aprofundadas, constantes de artigos de revistas, jornais, redes sociais, “media”, etc., bem como, evidentemente, intermináveis debates, conversas e conferências sobre o assunto e as suas conetividades.  Foi, portanto, indutivamente, e por técnicas de pesquisa bibliográfica e documental, que desenvolvi a elaboração do presente trabalho. Segundo Lakatos e Marconi (2003, p. 86), “a indução é um processo mental por intermédio do qual, partindo de dados particulares, suficientemente constatados, infere-se uma verdade geral ou universal, não contida”. Abordei o tema, em artigos de jornal, pela primeira vez, há cerca de quarenta anos e, de então para cá, não tenho parado de pensar nele, de ler sobre o assunto, de escrever e, sobretudo de tentar sistematizá-lo.

I – A sonegação da soberania ao soberano, seu legítimo proprietário

A partidocracia é um regime de monopólio dos partidos sobre o poder político. Este monopólio pode exercer-se de direito (na esmagadora maioria dos casos) ou de facto (numa minoria).

A partidocracia será o regime político pluripartidário, presente na maioria das democracias liberais, em que os partidos políticos assumem uma ampla posição de mediação monopolista sobre os sistemas eleitorais, não permitindo (de direito ou de facto) que se apresentem candidaturas fora dos partidos, pelo menos no núcleo essencial do poder político (parlamentos e governos), conseguindo assim subtrair, na prática, ao soberano (o povo) um efetivo controlo permanente sobre esse mesmo poder, que teoricamente lhe deveria pertencer.”(Carmona, 2023).

Trata-se dum regime inscrito no paradigma da dominação e do elitismo, paradigma este presente nas sociedades humanas desde o fim das sociedades primitivas e do advento das sociedades de classes, originadas pela Revolução Neolítica e que, permitindo a acumulação de bens e riquezas, com a descoberta da agricultura e da criação de gado (entre outras tecnologias), a propriedade privada, o sedentarismo e a urbanização, a partir desse momento, com o surgimento do Estado (como aparelho repressivo e de enquadramento das classes dominadas, ao serviço das elites e oligarquias dominantes geradas por essa acumulação, e da manutenção e reprodução dos sistemas económicos de dominação) a soberania popular até aí hegemónica nas sociedades primitivas destruídas pela Revolução Neolítica, é sonegada ao povo soberano, seu legítimo e único proprietário, transitando para as mãos das classes dominantes, para nunca mais delas sair. A democracia das sociedades primitivas extinguiu-se às mãos das elites dominantes nas novas sociedades de proprietários e dos seus Estados. São cerca de 12 mil anos de espoliação do povo do seu poder político, ao longo duma História que ainda não encontrou o seu fim, mas de cuja recuperação o povo ainda não desistiu. O fim da partidocracia pode vir a ser – o que será analisado mais à frente – mais um passo, entre tantos e tantos ao longo destes muitos milhares de anos, nessa longa caminhada pela recuperação da soberania perdida.

“Em nenhuma parte melhor do que na antiga Atenas podemos observar como o Estado se desenvolveu, pelo menos na primeira fase da sua evolução, com a transformação e substituição parciais dos órgãos da constituição gentílica pela introdução de novos órgãos, até completamente instauradas autoridades com poderes realmente governamentais — quando uma “força pública” armada, a serviço dessas autoridades (e que, por conseguinte, podia ser dirigida contra o povo), usurpou o lugar do verdadeiro “povo em armas”, que havia organizado sua autodefesa nas gens, nas fratrias e nas tribos”. (Engels, 1964, V).

E mais adiante: “Em resumo: a constituição gentílica ia chegando ao fim. A sociedade, crescendo a cada dia, ultrapassava o marco da gens; não podia conter ou suprimir nem mesmo os piores males que iam surgindo à sua vista. Enquanto isso, o Estado se desenvolvia sem ser notado. Os novos grupos, formados pela divisão do trabalho (primeiro entre a cidade e o campo, depois entre os diferentes ramos de trabalho nas cidades), haviam criado novos órgãos para a defesa dos seus interesses, e foram instituídos ofícios públicos de todas as espécies.” (Engels, op. citada, V).

Nestes excertos, exemplares, retirados do citado livro seminal de Engels (em grande parte sobre um outro de Lewis Morgan, “Ancient Society”) fica bem ilustrada esta passagem das democracias primitivas para as sociedades de classes, já sob o paradigma da dominação, das elites e das oligarquias, da propriedade privada, da alienação, da mercadoria, do dinheiro e toda a cada vez mais complexa parafernália do Estado, até atingir as versões nossas conhecidas dos Estados contemporâneos das democracias liberais.

Não se pense que esta transformação se processou de modo rápido, em poucas gerações e por todo o lado ao mesmo tempo. Não, o processo foi lento, demorado, prenhe de avanços e recuos, mas sempre sustentadamente dirigido na direção indicada. Iniciou-se nos locais onde primeiro se deram as condições materiais que o permitiam, como as zonas do Crescente Fértil, nas civilizações suméria, assíria e caldeia, onde a agricultura foi primeiramente descoberta, expandindo-se em ondas sucessivas pelo planeta, com mais incidência de novo onde as condições materiais eram mais favoráveis, como no vale do Nilo e, posteriormente, nas margens dos rios e dos mares, na Fenícia, Grécia, na península itálica, etc., por um processo de transmissão cultural e tecnológica, na maior parte das vezes, mas também, por vezes, em repetição sem que contudo houvesse qualquer contato cultural, como sucedeu nos Estados da Mesoamérica (Incas, Maias, Aztecas), entre tantos outros, mas onde essas condições materiais se repetiram muito antes da arribação dos descobridores portugueses.

Construído o Estado, está destruída a democracia popular. Até que o povo a recupere. O fim da partidocracia será mais um passo nesse sentido, como pretendemos demonstrar.

II – Como pôr fim à partidocracia: acabar com o monopólio dos partidos sobre o sistema eleitoral

Vimos acima que a principal caraterística da partidocracia é o monopólio dos partidos políticos sobre os sistemas eleitorais – “(…) o mecanismo regulado através de normas e procedimentos mediante o qual com eleições se obtém o total de mandatos a repartir entre os partidos políticos para a representação de cargos de eleição popular” (Rodríguez, Cardona e Pérez, 2015) – e, consequentemente, sobre os regimes políticos. Este monopólio, vimos também, traduz-se sobretudo no impedimento de apresentação de candidaturas independentes dos partidos aos órgãos de soberania representativos do poder central (parlamentos, governos).

Com este monopólio os partidos transformam-se em mediadores oficiais do poder político, acabando, por efeito de vários mecanismos que foram assinalados no artigo anterior, como a famosa “Lei de Ferro das Oligarquias” (Michels), por se tornarem os verdadeiros “proprietários” desse mesmo poder político, relegando a participação popular para um papel sem relevância, que se limita a formalizar uma pretensa legitimação, de 4 em 4 anos ou período similar, a qual se tornou de facto uma liturgia simulada, ou um simulacro de democracia, sem qualquer conteúdo substancial, ou pouco. Ninguém poderá dizer que as atuais democracias liberais contemporâneas e os seus regimes partidocráticos, incluindo as suas formações superiores (os Estados constitucionais) são verdadeiras democracias – ainda que meramente representativas – participativas, onde o povo exerce efetivamente a soberania que teoricamente lhe pertence, ou deveria pertencer.

“(A partidocracia) não é um mero fantasma criado pela nostalgia das ‘democracias orgânicas’, é uma ameaça latente e até natural em qualquer democracia, mas é sobretudo uma realidade dramática em países tão admiráveis (…) como a Itália, onde o próprio funcionamento do Estado se tornou uma ficção.” Contundentes palavras de Eduardo Lourenço (1991), que continua referindo que a Itália é apenas um exemplo entre tantos.

Mas como acabar com isto? Como pôr fim a esta simulação formal “travestida” de democracia?

A primeira resposta que surge nos espíritos, mesmo nos menos atentos, será a óbvia: pondo termo ao sobredito monopólio. Parece simples, mas, como veremos, não é. E não é, para além de várias razões apontadas no artigo anterior, porque os próprios beneficiários do regime partidocrata – a classe política – são simultaneamente os detentores do poder político e do aparelho central do Estado. Logo, nunca militarão contra si próprios.

Aqui há uns anos – não muitos – no tempo do consulado de Passos Coelho, um movimento popular que incluía o então deputado do PP José Ribeiro e Castro, promoveu a submissão à A.R. duma iniciativa popular, na qual o autor deste artigo participou modestamente e a qual subscreveu, com o intuito cirúrgico e circunscrito de promover a alteração do art.º 151º, n. 1, da C.R.P., comando este que tem apenas 20 palavras, das quais só 3 ou 4 seriam alteradas. A intenção limitava-se a permitir que cidadãos independentes e não-filiados partidariamente concorressem ao parlamento. Desta pequeníssima alteração surgiria, evidentemente, uma verdadeira fratura tectónica no regime político, de elevado grau destrutivo, e todos os intervenientes o sabiam. A proposta incluía ainda uma adaptação posterior da lei eleitoral, em conformidade, mas que não ia na altura a votação. O autor deste artigo já não recorda – e não encontra referências na internet – como terminou exatamente a votação, mas se bem se lembra, todos os partidos votaram contra.

Este pequeno episódio, quase anedótico, é contudo bem ilustrativo da reação das oligarquias políticas, sejam elas de esquerda ou de direita. O então primeiro ministro, Passos Coelho, em resposta a uma pergunta dum jornalista sobre o assunto disse qualquer coisa como: “Era o que faltava, se isto assim já é difícil de governar…”. Esta resposta sintetiza bem a posição de toda a classe política sobre o fim da partidocracia e contém em si uma óbvia visão redutora da democracia, a quem se considera como um “frete” a suportar.

Não será portanto possível contar com uma solução reformista que, de motu proprio, motive as oligarquias partidocráticas a conceder ao povo uma abertura desta amplitude. O sistema defendeu-se bem: só os partidos podem eleger representantes políticos e só estes podem promover uma alteração contra este princípio. É um verdadeiro círculo vicioso. Esta situação é comum a quase todas as democracias liberais, em maior ou menor grau, ou seja, a quase toda a realidade económico-cultural que se costuma designar por “Ocidente”, embora alguns países que a compõem sejam orientais ou oceânicos.

Contudo, todos nós bem sabemos que a luta do povo é capaz de gerar uma tal pressão sobre o sistema que este, vendo-se em perigo, preferirá ceder no acessório, para não perder o essencial. Esta atitude sucede muitas vezes na vida, nas mais diversas situações e muitas vezes tem acontecido no combate político ao longo da História.

Por exemplo, se surgir um movimento que se transforme em partido e adote este princípio, obtendo assim largas votações, rapidamente o sistema partidário se verá na contingência de a adotar também, para não perder tudo.

Outro exemplo: se a abstenção atingir tais níveis que deslegitimem o sistema e isso se dever a uma atitude consciente e deliberada contra a partidocracia, é também provável que novas cedências se verifiquem.

Enfim, os exemplos podem ser muitos e a criatividade da luta da cidadania dependerá sempre das circunstâncias.

Ponto é que o fim da normatividade jurídico-constitucional que impede os cidadãos de concorrer fora das listas partidárias aos cargos centrais do poder político é uma imposição necessária para obter uma vitória essencial sobre a partidocracia.

Esta alteração – que necessariamente acabará por existir e já existe em muitos países, embora fora do núcleo central de poder, na sua maioria – implicará ainda alterações normativas ao nível das leis ordinárias que regulam os sistemas eleitorais, uma vez que todos eles (ou quase, como veremos abaixo) estão desenhados em função do paradigma partidocrático, pelo que será forçoso reformulá-los e adequá-los, em função duma outra realidade não-partidocrática, na qual as candidaturas de cidadãos e/outras soluções independentes, como grupos ou associações, terão que ter cabimento, sendo certo que os  diversos países escolherão seguramente modelos diferentes entre si, desde que o essencial esteja salvaguardado: a possibilidade de candidaturas de cidadãos independentes dos partidos e o fim da respetiva proibição.

Convém, aqui chegados, esclarecer que este modelo não implicará a proibição de partidos políticos, a qual terá que ser sempre permitida, uma vez que a intenção é introduzir o máximo de concorrência possível no sistema eleitoral, e o máximo de liberdade possível. Proibir os partidos políticos seria adotar a mesma matriz do modelo partidocrático, mas com sinal inverso. O objetivo duma proposta de ultrapassagem dos modelos partidocráticos é introduzir mais liberdade e mais concorrência , o que necessariamente trará consigo uma continuação da deslocação do centro de gravidade da centralidade do poder político das elites partidocráticas e das oligarquias que servem, para o soberano (espoliado da sua soberania), tal como sucedeu quando os sistemas políticos – mesmo os liberais –  se viram forçados a ceder soberania na passagem de modelos autocráticos e de voto censitário, para sistemas não censitários, destes para sistemas autocráticos de partido único, destes, por sua vez, para sistemas de voto universal bipartidários e, posteriormente, para sistemas pluripartidários, até chegar às mais elaboradas formas de Estados constitucionais de direito e de bem-estar.  Cada mudança destas – e todas elas se passaram em tão pouco tempo! – significaram sempre aumento de concorrência entre as oligarquias hegemónicas, logo mais liberdade e, consequentemente, reforço do poder do povo, ou seja, recuperação de parcelas significativas da soberania alienada. Qualquer observação à vista desarmada ressaltará este processo: as diferenças que existem entre as democracias liberais contemporâneas e as já então democracias liberais de final do primeiro quartel do séc. passado, são abismais e trouxeram sempre consigo este movimento de deslocação do centro de gravidade do poder político.  “Só um exame sereno e franco dos perigos oligárquicos da democracia nos permitirá reduzi-los ao mínimo, mesmo que nunca possam ser de todo eliminados” (Michels, 1979, pág. 43).

Esta matriz, sendo condição sine qua non para o fim da partidocracia, não é contudo suficiente só por si, como veremos de seguida.

III – A experiência portuguesa do fim da partidocracia no nível autárquico

Em Portugal, em período relativamente recente, no início deste séc., foi finalmente introduzida uma lei eleitoral autárquica permitindo a apresentação de candidaturas independentes, na sequência duma experiência prévia limitada às assembleias de freguesia.

O resultado foi de tal modo promissor, no que diz respeito à participação cidadã na política e no poder autárquico, que em menos de duas décadas os principais partidos (PS e PSD) da partidocracia portuguesa se juntaram – sempre se juntam quando se trata de defender o seu regime – com vista a alterar a lei, tornando-a quase inexequível para o fim pretendido, só sendo travados, à última hora, pelo “chumbo” do Tribunal Constitucional.

Na verdade, em pouco tempo apareceram centenas de listas e milhares de candidatos, sendo eleitos umas largas centenas entre eles.

O mapa político autárquico português sofreu um tal terramoto que, em pouco tempo, retirou à partidocracia sistémica importantes cidades, como o Porto, Oeiras e Coimbra, e produziu manchas contínuas de território sob administração cidadã independente, como aqui mesmo junto de Évora, em Redondo, Borba e Estremoz.

Em 2021 foram conquistadas 19 câmaras municipais (mais 3 do que em 2017), 132 mandatos nestes órgãos, 409 juntas de freguesia (mais 10 do que em 2017), 1035 listas e milhares de cidadãos envolvidos (Pordata), o que evidentemente tem um significado profundo, transformando-se os GCE (Grupos de Cidadãos Eleitores, na expressão oficial) na terceira força autárquica nacional. Dentro de alguns anos, se se mantiver este ritmo, provavelmente não será possível disputar este segmento da soberania com partidos políticos.

Tudo isto desenvolvido no marco dum quadro altamente desfavorável para a cidadania antipartidocrática, como a virgindade dos procedimentos e da experiência, a ausência de estruturas de apoio (hoje já começa a haver, incluindo uma associação – AMAI) e a oposição dos partidos monopolistas do poder político.

Ainda assim, o sucesso foi tal, que o regime partidocrático se uniu para arrepiar caminho, conseguindo a conivência do P.R., e todos só sendo travados pelo Tribunal Constitucional. Não será de estranhar que em breve venham com nova tentativa, uma vez que arriscam claramente, com a rapidez a que o processo cidadão cresce, virem a perder o controlo sobre um importante segmento da soberania e, pior, o exemplo que está a ser dado vir a contaminar as eleições parlamentares, exigindo a cidadania que o processo se replique.

IV – O caso suíço

O fim da proibição normativa de acesso dos cidadãos independentes e de organizações suas, ad hoc e espontâneas, aos cargos do poder político, não significa que, imediatamente, se encerre o quadro de hegemonia partidária sobre os sistemas eleitorais e, consequentemente, os traços fundamentais da matriz partidocrática.

A Suíça é disso exemplo e, mais do que a Suíça, muitos outros países, como Portugal, onde a proibição de participação de cidadãos em eleições, sem a mediação de partidos, não existe nas eleições presidenciais e, há duas décadas, nas eleições autárquicas.

São muitos os países onde, segmentária e parcialmente, sobretudo na periferia do poder político, há soluções de acesso de candidaturas cidadãs a órgãos de soberania e em todos eles, como em Portugal, o paradigma partidocrático mantém-se.

A Suíça é talvez o caso mais estruturado de devolução da soberania ao soberano (o povo), não só por ter todos os níveis de concorrência aos cargos políticos abertos à cidadania e não permitindo o monopólio dos partidos (embora estes continuem a ser livres de se organizarem), como também pela utilização intensiva e massiva de instrumentos de democracia direta, como o referendo, o abberufungsrecht (direito de revogoção de mandatos) e a iniciativa popular e até as famosas assembleias dos pequenos cantões (landsgemeinde). A este propósito: https://www.youtube.com/watch?v=YXpGkGz45eo.

O sistema eleitoral suíço é muito complexo, bem como os restantes instrumentos democráticos, mas deve ressaltar-se a possibilidade de apresentação de candidatos independentes, fora das listas partidárias, de riscar nomes nas listas apresentadas, de votar em mais do que uma lista e uma vasta panóplia de soluções que fazem da Suíça, sem qualquer margem para dúvidas, o país mais democrático do mundo, dentro daqueles com dimensão significativa e uma população de quase 9 milhões de habitantes, muito próxima da de Portugal.

Contudo, apesar deste panorama, a Suíça tem uma baixa taxa de participação nos processos eleitorais e a hegemonia dos partidos teima em persistir, na prática, embora sem cobertura normativa. Um estudo muito alargado do IPZ (Instituto de Ciências Políticas) da Universidade de Zurique, feito ao longo de alguns anos (2012 a 2015), denominado “Desigualdade, Democracia e Participação” (https://www.swissinfo.ch/por/democraciadireta/cidadãos-ativos_recorde-de-abstencão-na-suíça-no-microscópio-dos-pesquisadores/41627286), concluiu que “poder participar é mais importante do que participar”, o que parece fazer sentido, até porque o nível de satisfação dos cidadãos, apurado também nesse estudo, parece bastante alto. Ou seja, as pessoas confiam no seu sistema, sabem que podem participar e isso tranquiliza-as relativamente aos seus representantes, ao seu sistema e às suas instituições democráticas. O protagonismo político desejado pela cidadania não significa que todos tenham que participar em tudo: basta que saibam que o podem fazer. Daqui a poder deduzir-se que o mesmo se passará relativamente à manutenção da hegemonia partidária, num país que não é partidocrático, parece uma inferência lógica daquelas conclusões. A verdade é que os partidos políticos, num regime político e eleitoral altamente concorrencial, legitimado e controlado pelo povo, se autocorrigem, se tornam mais humildes, menos corruptos, mais transparentes e mais próximos dos cidadãos e isso é exatamente o que se passa na Suíça eé aquilo que se pretende.  Por sua vez, a professora Silja Hausermann conclui nesse mesmo estudo: “Este trabalho mostra que o sentido de responsabilidade que os cidadãos têm sobre si mesmos é muito importante para a participação cidadã. Talvez tenhamos que trabalhar mais sobre a educação cívica para aumentar o número de cidadãos nas urnas”. Ou seja, para além das razões indicadas, não nos podemos esquecer que o fim da partidocracia é um processo, como processos são outras alterações políticas deste porte. À primeira vista, a situação suíça parece paradoxal mas, quebrado o verniz que o cobre, esse paradoxo desaparece: os cidadãos estão descansados sobre o seu poder pouco disputado e não temem perdê-lo.

O caso já falado das autárquicas portuguesas tem-no demonstrado ao longo deste quartel do séc. XXI.

Por outro lado, não serão de desprezar alguns efeitos superestruturais nas diferentes democracias liberais, de raiz cultural e sociológica, que poderão também influenciar estes aspetos dos processos políticos em diferentes países de sistemas similares, como a educação, a tradição democrática liberal, e outros aspetos sociológicos deste ou doutro tipo.

V – Outras medidas de democracia direta coadjuvantes do fim dos regimes partidocráticos

O fim da partidocracia, por si só, não é suficiente para assegurar a continuidade do processo de transição para a democracia popular e para a mudança paradigmática pretendida: sair do elitismo e entrar num regime de soberania popular, ou populismo, se se quiser adotar um termo correto, mas cujo sentido usual está de tal modo deturpado que desaconselha o seu uso.

Esta verdadeira “revolução democrática”, radical, pluralista e agonística  (Mouffe), este aprofundamento da democracia por via reformista, esta mudança na solução hegemónica do regime político, fazendo o centro de gravidade do seu poder central, da soberania, deslocar-se dum paradigma elitista para um paradigma populista, é, como vimos, um processo que não será possível sem uma panóplia vasta de outros instrumentos de devolução de soberania ao povo, em vários níveis, uns mais importantes do que outros, de diferentes naturezas, em que uns jogam um papel mais importante do que outros, mas só todos juntos e conexos podem levar o processo a bom porto, o que não significa chegar a um fim.

O conflito – mais do que o consenso – é parte essencial da política, aliás, é a própria política. O que se pretende atingir não é uma hegemonia de classe, oligarquia, elite, ou sistema económico, mas uma hegemonia da democracia, ela mesma. A democracia integral, popular, é a parte substantiva da equação: a parte económica – e outras – são meramente adjetivas. Só estabelecida uma verdadeira democracia integral, será possível decidir todos os outros aspetos da vida social, por exemplo, o modelo do sistema económico, capitalista, socialista, híbrido, cooperativo, utilitarista, etc.

Se o fim da partidocracia, como dissemos, é condição sine qua non para abrir a tampa da Caixa de Pandora, os instrumentos de democracia radical e direta são também eles próprios a outra face da mesma moeda: sem eles, não será possível a mudança de paradigma.

“Por democracia directa se entiende aquí un grupo de instituciones políticas en las que los ciudadanos deciden o emiten su opinión en las urnas a través del sufragio universal y secreto y que no forma parte del proceso electivo regular de autoridades (Altman, 2010, pág. 35)”.

De entre muitos desses instrumentos serão absolutamente básicos três: a revogação permanente de mandatos (recall/abberufungsrecht), a iniciativa legislativa popular e o referendo vinculativo, por consubstanciarem a própria natureza da soberania popular. “(…) la democracia directa se ejerce a través de mecanismos como el referéndum, iniciativa popular y revocatoria de mandato garantizando la participación directa de la ciudadanía. Muchos dicen que dichos instrumentos no son de democracia directa, sino semidirecta, ya que continúa predominando el sistema representativo (Duverger, 1995, pág.93).

Se é verdade que nas sociedades complexas e multitudinárias não pode deixar de haver representação e, logo, mandatos, é evidente que também não pode deixar de haver o direito de revogação dos mesmos. Afinal, o poder pertence ao povo e este, portanto, limita-se a mandatar representantes para o exercerem em seu nome. Logo, não se compreenderia que, a qualquer momento, os não possa revogar, como sucede aliás em sede de direito civil. “Se considerarmos o direito de revogação em sua perspetiva fundamental, ou seja, se lembrarmos que o povo é o verdadeiro soberano, aí não teremos nenhuma dúvida. Ninguém precisa apresentar motivos para conceder mandato a um representante. Porque haveria de ter de fazê-lo para revogá-lo?” (Santana, 2004). De facto, quem tem poder para mandatar, tem logicamente poder para revogar esse mandato. Nem doutra maneira se poderia compreender.

Com o referendo passa-se algo de semelhante, com o aviso de que o referendo só se compreende com a existência simultânea de matérias da exclusiva competência do povo, ou seja, que não podem ser decididas de outra forma, como por exemplo os tratados internacionais de especial relevância, bem como com a iniciativa popular.

A miríade de instrumentos de democracia direta e participativa é de tal forma extensa (plebiscitos, sondagens obrigatórias, democracia participativa, etc.) que não pode ser tratada num estudo desta natureza. Mas de qualquer modo o seu local não seria aqui, mas sim noutro artigo, que completará a tese erguida com a caraterização da democracia popular, o que sucederá noutra ocasião.

VI – Conclusão

Como se aflorou acima, as oligarquias económico-financeiras que dominam o regime político partidocrata são filhas da burguesia tradicional e, como ela, portadoras dum ADN de adaptabilidade como nenhuma outra classe social, em toda a História da humanidade, foi capaz de demonstrar. Atualmente, sob a influência hegemónica radical do neoliberalismo dentro das democracias liberais e dos regimes partidocratas, pode dizer-se que os respetivos regimes políticos estão, sob o ponto de vista dos seus principais beneficiários, no limite da capacidade de concessões democráticas. Não se vislumbra que, sem colocarem em risco a sobrevivência do próprio sistema económico – o que nunca admitirão, salvo pela força – possam alargar muito mais as fronteiras democráticas. O paradoxo é imenso. Em muitas situações, a que temos assistido com frequência, um pouco por todo o lado e sob as mais diversas formas, perdem o controlo sobre as situações políticas e chegam a ter que suportar, ainda que provisoriamente, governações que estão nas margens do outsider. Aconteceu assim na Grécia do Syriza, nos movimentos populares 15M em Espanha, com os “Gilets Jaunes”, com o “Brexit”, com o “chumbo” da constituição da União Europeia, etc., etc. Quando, em 1789, se abriu a Caixa de Pandora, talvez nenhum ideólogo burguês imaginasse onde se poderia chegar. Mas assim aconteceu, às mãos de muitas contingências, a central das quais tem sido a luta popular pela recuperação da soberania e de melhores condições de vida. A forma de continuar esta luta e este processo histórico, e de assim conseguir continuar a deslocar o centro de gravidade do poder político e da soberania, dos regimes de elites para regimes do povo, é toda outra questão. O que as oligarquias – classe política incluída e na primeira linha de fogo – farão para o impedir e para se adaptarem é também toda outra questão, a tentar dilucidar em outro estudo.

Referências bibliográficas:

Apuntes para el anályses legislativo, desde una perspectiva democrática, de transparência y de política pública eficaces, Camara de Diputados, México, 2015:

RODRÍGUEZ, Maria Concepción Martínez; CARDONA, Miguel Alvarado; PÉREZ, Rolando Reynoso, ‘Transformaciones del Régimen Democrático’.

ALTMAN, David, (2010, enero-julio). ‘Plebiscitos, referendos e iniciativas populares en América Latina: ¿mecanismos de control político o políticamente controlado?’ Perfiles latinoamericanos.

CARMONA, José, ‘A Partidocracia e o seu Papel nas Democracias Liberais Contemporâneas’, Universidade de Évora, 2023.

DUVERGER, Maurice, ‘Institutions politiques et droit constitutionnel, París: Presses Universitaires de France’, 1955.

ENGELS, Friedrich, ‘A Origem da Família, da Propriedade e do Estado’, V- Génese do Estado Ateniense, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, 1964, (1884), em marxists.org.

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade, ‘Fundamentos de metodologia científica’, 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.

LOURENÇO, Eduardo, Revista Finisterra, n.º 8, primavera de 1961, ‘Democracia ou Partidocracia?’, direção de Eduardo Lourenço.

MICHELS, Robert, ‘Los Partidos Políticos’, Amorrortu, Buenos Aires, 1979, (1908).

MOUFFE, Chantal, ‘Democracia, Cidadania e a Questão do Pluralismo’, Revista Política & Sociedade, n.º 3, Universidade Federal de Sta. Catarina, outubro de 2003

MORGAN, Lewis Henry, ‘A Sociedade Antiga’, Expresso Zahar, livro digital, 2014, (1877)

SANTANA, Alexander, 2004, ‘Revogação do Mandato Político Representativo’, E/A, Curitiba, 2004.

Bases de dados e sites consultados:

Pordata (Fundação Francisco Manuel dos Santos)

Swissinfo.ch

AMAI

Youtube

Universidades de Évora/Açores, Évora, doutoramento em Teoria Política, Relações Internacionais e Direitos Humanos, trabalho na cadeira de Filosofia do Estado e das Relações Internacionais, maio de 2023.

José Carmona

A Democracia Popular

O CAMINHO PARA O POPULISMO: ESCOLHOS E ESPERANÇAS

O prognóstico

“Quando o roubo se torna um modo de vida para um grupo de homens, eles criam para si próprios, no decorrer do tempo, um sistema jurídico que o autoriza e um código moral que o glorifica.”

Frederic Bastien

Resumo: Este trabalho apresenta-se na sequência de outros dois anteriores e na antecedência de outros posteriores, todos dentro dum tema vasto que concluirá – depois de devidamente “suturado” – numa teoria da transformação do Estado constitucional em Estado de democracia popular. Todos os trabalhos podem ser lidos separadamente, sem sequer se ter que seguir a sua sequência inicial: a partidocracia, as formas de a conjurar, a transição para a soberania popular e para o Estado constitucional de democracia popular, através da introdução de instrumentos de democracia direta e a caraterização desta última formulação política do Estado.

Neste específico trabalho, são estudadas – sumariamente, como não podia deixar de ser – as caraterizações do elitismo oligárquico das democracias liberais e dos Estados constitucionais, o populismo na verdadeira aceção  do termo, as suas origens na sociedades primitivas e as razões da sua degeneração, as perspetivas de abertura e transição de paradigma, a adoção da via reformista profunda nessa transição (o reformismo revolucionário), em detrimento da via revolucionária disruptiva e violenta, e o principal escolho a essa transformação paradigmática, a saber, a subordinação do económico ao político e as principais dificuldades que apresenta, tentando demonstrar-se que apesar de tudo essa tarefa é possível.

Finalmente, aborda-se a caraterização das formas de democracia – representativa ou indireta, direta e semi-direta e levanta-se a hipótese da superioridade e adaptabilidade da formulação semi-direta, para finalmente se extraírem algumas conclusões que introduzam a passagem para o estudo mais aprofundado, em trabalho posterior, dos principais instrumentos de democracia direta a introduzir nos Estados constitucionais.

Abstract: This paper is presented in the sequence of two previous ones and in advance of others later, all within a vast theme that will conclude – after being properly “sutured” – in a theory of the transformation of the constitutional State into a State of people’s democracy. All the works can be read separately, without even having to follow their initial sequence: partycracy, ways to conjure it up, the transition to popular sovereignty and to the constitutional state of people’s democracy, through the introduction of instruments of democracy direct and the characterization of this last political formulation of the State.

In this specific work, the characterizations of the oligarchic elitism of liberal democracies and constitutional states, populism in the true sense of the term, its origins in primitive societies and the reasons for its degeneration, are studied – summarily, of course – the perspectives of opening and paradigm transition, the adoption of the profound reformist path in this transition (revolutionary reformism), to the detriment of the disruptive and violent revolutionary path, and the main obstacle to this paradigmatic transformation, namely, the subordination of the economic to the political and the main difficulties it presents, trying to demonstrate that despite everything this task is possible.

Finally, the characterization of the forms of democracy – representative or indirect, direct and semi-direct – is approached and the hypothesis of the superiority and adaptability of the semi-direct formulation is raised, to finally extract some conclusions that introduce the passage to the study more in depth, in a later work, of the main instruments of direct democracy to be introduced in constitutional States

Palavras chave: Partidocracia, elitismo, democracia liberal, partidos políticos, poder político, soberania popular, dominação, democracia popular, populismo, democracia direta, recall, revogação de mandatos, referendo, Estado de direito, constitucionalismo.

I – Introdução

Este é o terceiro artigo dum conjunto que, podendo ser lido peça por peça, pode e deve ser entendido em conjunto. No primeiro estabeleceu-se uma definição de partidocracia e analisou-se o papel que desempenha no seio das democracias liberais contemporâneas, no segundo abordou-se a perda da soberania popular às mãos das sociedades de classes e do Estado, a forma de ultrapassar o bloqueio partidocrático na atualidade e de introduzir a transição para um modelo novo de democracia popular, abrindo assim a possibilidade de recuperação dessa soberania para o soberano, tema esse que é o objetivo deste último artigo, agora presente, ou seja, o estudo duma democracia aprofundada e integral, que possa ser o caminho para a instituição dum novo paradigma, não elitista, em que o domínio do político pertença ao povo e em que o económico se submeta a este, de forma consolidada, estabilizada e estrutural, que permita a manutenção das modificações introduzidas nos regimes políticos.

Reconheça-se que, em termos de estado da arte, o tema não é particularmente abordado e a literatura não é abundante, estando principalmente concentrada em artigos científicos – muito mais do que obras de fundo – em temáticas de revistas e teses de mestrado, um pouco arrastado pela pressão que se vai, lentamente, sentindo cada vez mais presente na opinião pública, a qual vai conseguindo identificar como causas do afastamento popular das instituições políticas democráticas e a sua aversão à classe política, o hermetismo dos partidos políticos, o seu papel antidemocrático, a corrupção endémica e o repúdio pela “intromissão” do protagonismo popular diretamente na política, que estes julgam reservada aos “eleitos”, leia-se, as elites partidocráticas.

A investigação do tema em análise foi desenrolada ao longo das últimas décadas, quer através da observação direta de várias sociedades de democracia liberal, quer de leituras sistemáticas sobre o tema, algumas delas (as mais importantes e consistentes) constantes das referências bibliográficas, quer de tantas e tantas outras mais ligeiras e menos aprofundadas, constantes de artigos de revistas, jornais, redes sociais, “media”, etc., bem como, evidentemente, intermináveis debates, conversas e conferências sobre o assunto e as suas conetividades.  Foi, portanto, indutivamente, e por técnicas de pesquisa bibliográfica e documental, que desenvolvi a elaboração do presente trabalho. Segundo Lakatos e Marconi (2003, p. 86), “a indução é um processo mental por intermédio do qual, partindo de dados particulares, suficientemente constatados, infere-se uma verdade geral ou universal, não contida”. Abordei o tema, em artigos de jornal, pela primeira vez, há cerca de quarenta anos e, de então para cá, não tenho parado de pensar nele, de ler sobre o assunto, de escrever e, sobretudo de tentar sistematizá-lo.

II – A mudança de paradigma: do elitismo oligárquico para o populismo

A) O populismo é o regime político em que o povo é soberano. Esta é a verdadeira aceção do termo. Não há populismo de direita, nem populismo de esquerda: há simplesmente populismo, por oposição a regimes de governanças elitistas e de oligarquias. Foi assim que autores tão diferentes como Ernesto Laclau, Chantal Mouffe e Alain de Benoist o detetaram e analisaram, embora cada um com a sua abordagem, insistindo Laclau e Mouffe na adjetivação “de esquerda”: “Aquilo que precisamos com urgência é de uma estratégia populista de esquerda com a finalidade de construir um ‘povo’, combinando uma variedade de formas de resistência democrática à pós-democracia para estabelecer uma formação hegemónica mais democrática” (Mouffe, 2019, págs. 44/5) enquanto Benoist (2017, pág. 121) o classifica de modo mais abrangente (e correto, a nosso ver): “O populismo proclama a soberania do povo, com tanto mais força, quanto mais constata a amplitude da crise de legitimidade das classes dominantes. Se não se toma consciência desta crise de legitimidade, condenamo-nos por antecipação a não compreender nada do que é o populismo. O populismo não quer mais, no fundo, do que popular a democracia”. Diga-se, em abono da verdade, que estes autores – e muitos outros no mesmo sentido – foram buscar a ideia a Marx que, na Crítica do Direito Político de Hegel (1848), refere a autoconstituição do povo como sujeito, tal como aliás o fazem Laclau, Mouffe e Benoist. A crítica deste último autor à posição de Laclau e Mouffe (a quem dedica um capítulo na obra citada) não atinge o seu posicionamento populista – bem antes pelo contrário, subscreve-o – mas sim a adjetivação de esquerda e de socialista. Para Benoist o populismo não é de esquerda, nem de direita, mas apenas populismo (soberania do povo) pluralista e é esta natureza plural que alberga as linhas de divisão intrapopulistas, da mais diversa natureza, designadamente aquelas que se costumam definir como de esquerda e de direita, designação esta que Benoist recusa e entende ultrapassada.

A oposição agonística central não se produz no seio do povo, mas sim entre este e as elites e oligarquias (“os de cima contra os de baixo”, na expressão de Juan Carlos Monedero, também ele politólogo e líder do Podemos, assumidos discípulos de Laclau e Mouffe, à qual nós acrescentaríamos “e os debaixo contra os de cima”, o que nada tem de tautológico), o que é aceite quer por Benoist, quer por Mouffe e Laclau.

Esta questão da natureza do populismo é importante para a compreensão do artigo e merece tratamento específico e autónomo, mas não no marco deste estudo onde naturalmente não caberia, mas sim de um outro. Contudo, merece um parágrafo, dado que é tão importante que, na nossa tese, a hecatombe a que têm estado sujeitos os movimentos discípulos e diretamente influenciados pelas teses de Laclau e Mouffe (por vezes até com intervenção direta como protagonistas, como o caso de Mouffe com o Podemos) se deve a dois erros fundamentais: (1) dividir o povo em esquerda e direita e (2) assumir uma agenda de esquerda e socialista, ainda por cima intimamente ligada aos temas “fraturantes” gratos a uma pequena-burguesia maioritariamente juvenil, universitária e urbana, de marcada influência “woke”, o que denota um espantoso desconhecimento do sentir profundo dos respetivos povos (sobretudo no caso espanhol). Benoist previu, por estas razões, a possibilidade de insucesso do Podemos, aquando do momento do seu maior sucesso, e na verdade após esse momento esta formação partidária (agora significativamente chamada “a” Podemos) nunca foi capaz de compreender e ultrapassar este erro. À semelhança do nosso Bloco de Esquerda que, sem ter atingido o sucesso do seu congénere espanhol, passa também agora por um processo rápido de irrelevantização e pelos mesmos motivos. Os verdadeiros adversários elegidos no campo agonístico foram os respetivos “povos de direita”, sobretudo quando o combate se centrava – o que frequentemente acontece – nos temas referidos e assumidos privilegiadamente por este tipo de formações partidárias: a ideologia de género, os assuntos sexocêntricos, o folclore “cultural”, o apoio às imigrações desordenadas, tão repudiadas pelos povos e que apenas servem os interesses de oligarquias económicas, nunca os dos próprios povos, etc., quando não é preciso ser genial para compreender que o povo, seja ele de esquerda ou de direita, é povo antes de tudo, são todos eles desapossados, e tem uma agenda a léguas destes temas, centrada na crise da habitação, no desemprego, nos custos dos combustíveis e da energia, nos preços da alimentação, nos aumentos salariais, na corrupção, no seu próprio protagonismo político, etc. O mesmo se está passando, com as especificidades de cada país, com o Syriza e o La France Insoumise, embora cada um com as suas especificidades. Compare-se os resultados destes partidos com os das formações populistas de direita e não há muito espaço para espanto. Estas soluções nunca triunfarão, no palco da prática política, enquanto não for compreendido que não é o povo que é inimigo do povo e que não é no seio do povo que passam as ruturas, mas sim entre o povo e as elites e oligarquias, como diz Benoist.

Por outro lado, e com sinal inverso mas claramente com menos erros, o mesmo se passa no populismo de direita que, apesar de com mais sucesso, muito raramente consegue a criação duma nova formação hegemónica, nem sequer no caso francês, onde há mais de 50 anos o tenta e ameaça, através da ex-Frente Nacional, agora denominada Reagrupamento Nacional. O maior sucesso (ou menor insucesso) dos populismos de direita é o caso húngaro, já com suficiente sedimentação para se considerar uma formação política hegemónica. Mas mesmo neste caso é evidente que o regime atual da Hungria de Vítor Órban está nos antípodas do populismo que defendemos, tal como nos mesmos antípodas está o regime venezuelano de Nicolás Maduro e da ironicamente denominada “Revolução Bolivariana”, ou a Polónia atual do PiS, cujo rumo definitivo parece ainda estar por esclarecer, embora a violação de direitos fundamentais, como a separação de poderes, surja como uma forte tendência. O populismo é – só pode ser, como o entendemos, com Laclau, Mouffe, Benoist e outros – uma formação hegemónica radicalmente democrática, substancial, perene, sistémica e solidamente estrutural, em que todo o poder de decisão político está nas mãos do povo. O conteúdo das decisões políticas é adjetivo, a formulação democrática é substantiva. Se o sistema económico escolhido é capitalista ou socialista, ou mais ou menos híbrido, essa é uma decisão do povo soberano, constituída democraticamente no marco das instituições políticas dum regime populista, ou, se se quiser, de democracia popular, o que é usado no mesmo sentido. É desta realidade que falamos no âmbito deste estudo.

 O termo “populismo” é utilizado, por outro lado, comummente com um sentido diferente deste, normalmente pejorativo, significando uma política demagógica, simplista e enganosa, que faz apelo a sentimentos básicos do povo com a única intenção de angariar apoio e não de os resolver. Esta aceção é meramente jornalística e sem conexão com a aceção científica. A este propósito, Errejón (2016, págs. 84/5), em debate com Mouffe: “(…) quero fazer uma reflexão sobre as razões da presença do termo ‘populismo’ na boca das elites, que nunca são capazes de defini-lo, salvo como artefacto denegritório do adversário. O seu uso dominante, mediático e intelectual, associa-o à demagogia, um recurso de empreendedores políticos para exaltar as baixas paixões de gente com pouca formação, que está disposta a votar coisas irresponsáveis, em momentos de desespero ou frustração. (…) Subjaz (a esta posição, N.A.) também essa velha utopia conservadora da possibilidade de uma democracia sem povo (…).”

“O futuro terá de mostrar se, atualmente, estamos num período populista ou se o zeitgeist populista é o novo normal. Embora os partidos populistas, em particular da direita radical, tenham aumentado a sua representação no Parlamento Europeu em 2019 e agora sejam representados em quase todos os grupos políticos em Bruxelas, a comunicação social e a política interpretaram as eleições europeias de 2019 como uma derrota ou, na melhor das hipóteses, estagnação do populismo. Sentindo-se fortalecidos pela reação popular contra o Brexit e Trump, cada vez mais os políticos do mainstream declaram um “retorno ao centro”, longe das posições populistas (direita radical). No entanto, se esse “retorno” sobreviverá à próxima vitória populista anunciada numa eleição nacional num importante estado-membro da UE, e realmente acabará com o Zeitgeist populista, ainda está para ser visto” (Mudde, 2021). O “populismo”, afinal, acabou por vencer em Itália, embora esse facto não altere muito o ceticismo de Mudde. Por outro lado, em Espanha, o Podemos cai a uma velocidade vertiginosa, na razão direta da subida do Vox. Ou seja, as coisas não estão claramente estabilizadas. Eleições há todos os meses pela Europa fora e a única coisa estável é a instabilidade.

Finalmente, as formações políticas tidas como populistas, nesta perspetiva mais comum, sendo embora todas elas clara manifestação reativa do repúdio popular pelas formações políticas tradicionais do establishment partidocrata que vigorou e vigora hegemonicamente nas democracias liberais atuais, sobretudo depois do final da II Guerra, rapidamente se transformam – quando não o são logo desde a nascença – em formações partidocratas elitistas, como sucedeu com os já citados exemplos espanhol e venezuelano, húngaro, português (B.E.), e tantos outros. A “Lei de Ferro das Oligarquias”, enunciada por Robert Michels, é uma força poderosíssima. Usando uma expressão popular, com o perdão dos leitores, diríamos que o que tem de ser, tem muita força. O caso do nosso B.E., que se tornou ele próprio num partido sistémico e que de populista já guarda muito pouco, é um bom exemplo do que digo. Bem como o é já, em parte, o Chega, e mais será em breve, sobretudo se integrar uma coligação governamental.

B) As sociedades primitivas eram democracias do povo, ou seja, democracias populares, ou seja, regimes populistas. Desde então, com o advento da acumulação de riqueza e as sociedades de classes, inerentes aos sistemas económicos de exploração de maiorias por minorias, a História tem sido marcada pela luta constante do povo contra as elites oligárquicas, em busca da recuperação da soberania perdida. É este o cunho matricial da história da humanidade e das sociedades humanas, do fim das sociedades primitivas às sociedades complexas contemporâneas, sejam elas democracias liberais ou não. Marx e Engels disseram que “A história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes”, numa das suas mais célebres e repetidas frases (Marx e Engels, 1998), na abertura do “Manifesto Comunista”, logo na 1ª edição, em 1848, juntamente com os acontecimentos da Comuna de Paris, prosseguindo:  “Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burgueses de corporação  e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta, uma luta que de cada vez acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta” (op. cit.). Reconhecendo embora que há vida e há História para além desta luta, prefiro dizer que a luta dos povos e das classes dominadas pela recuperação da soberania, pelo fim da dominação e por condições materiais de vida digna – e era a isto que Marx e Engels se referiam – são efetivamente o paradigma de todos os paradigmas, a matriz central das sociedades humanas, sem cuja compreensão nada mais se compreende. Os povos (as classes dominadas) não lutam apenas pela melhoria dessas condições materiais: lutam também pelo controlo do poder político que lhes pertence e que lhes foi roubado – com a violência que carateriza o conceito jurídico de roubo – e que pretendem recuperar, bem como lutam ainda por reconhecimento, no sentido que Axel Honneth deu à expressão, por protagonismo e por igualdade. Ou seja, a luta do povo – a eterna luta dos desapossados contra os possidentes – não é meramente economicista, mas é também ideológica e provida dum ethos intrínseco, cujo núcleo central se mantém estável ao longo das eras e é sempre bem visível, como foi o caso das revoluções russa e francesa e até, embora na devida escala, da portuguesa de 74/75, que o autor deste trabalho teve o privilégio de viver.

A verdade é que esta luta tem conduzido, paulatinamente, muito paulatinamente até, a uma permanente deslocação do centro de gravidade do poder político na direção do soberano vitimado por este processo histórico. O povo tem hoje muito mais poder do que tinha nas sociedades esclavagistas, na Roma republicana e até na Atenas da democracia multiplamente censitária. Bem como tem mais poder do que tinha nos regimes feudais das oligarquias aristocráticas, e do que tinha no advento das democracias liberais, da Revolução Industrial e dos capitalismos burgueses liberais, e ainda do que tinha nos Estados de direito, relativamente aos Estados sociais de direito e aos Estados constitucionais de direito. 

E é este processo que se pretende continuar, reconhecendo que estamos hoje mais perto do que ontem. É um processo de radicalização da democracia, de aprofundamento das instituições democráticas, de alargamento dos instrumentos de soberania popular, que possam contribuir para, duma forma consolidada, estrutural, sistémica e estabilizada, conferir ao povo mais parcelas da soberania que lhe subtraíram. É um caminho longo e lento, mas o mais longo caminho faz-se caminhando e todos se iniciam por um primeiro passo, como referia Mao Zedong. Nos últimos 3/4 de século os avanços foram notáveis e, fiando-nos na lei da aceleração do tempo histórico, mais notáveis ainda serão nos próximos dois quartéis.

Nesta luta os partidos “populistas”, tal como acima os vimos retratados, jogam indiscutivelmente um papel com alguns traços positivos e favoráveis à construção hegemónica pretendida, sobretudo no que respeita à concorrência que introduzem na partidocracia e na ameaça que representam para o mainstream, mas não mais do que isso. Ou seja, um papel contextual e circunstancial, porque o verdadeiro motor desta transformação – como a vimos e a defendemos – é outro: é o reformismo democrático e popular, como o enunciamos acima e melhor o vamos caraterizar abaixo. Só esse movimento subterrâneo, tectónico, tem a capacidade de alterar profundamente o estado de coisas, no sentido da continuidade das transformações democráticas que podem conduzir a uma formação hegemónica de verdadeira soberania popular. Essas transformações raramente são obra de homens providenciais e partidos-relâmpago, mas antes da luta coletiva dos povos pela assunção dos seus destinos nas suas mãos, ainda que por vezes o tenha sido em situações revolucionárias, mas quase sempre abortadas, como sucedeu com os sovietes russos às mãos do Partido Bolchevique e na Revolução Francesa às mãos da burguesia e do seu caudilho Napoleão Bonaparte. Não quer dizer que esses movimentos revolucionários não deixem traços sistémicos de alteração – deixam muitas vezes – mas sempre em muito menor escala do que aquilo que anunciam. Sempre assim foi e assim continuará a ser. Contudo, como veremos de seguida, as revoluções estão hoje, no marco das democracias liberais e dos Estados constitucionais, postas de parte.

III – Reforma ou revolução?

A forma de conduzir este processo poderá – e deverá – diferir de país para país, de cultura para cultura, de contexto para contexto. Neste artigo atenho-me às democracias liberais nossas contemporâneas, do espaço político, económico e social chamado “Ocidente” e tenho particularmente em mente as suas formações superiores, os Estados constitucionais de direito.

Aqui, no marco dos Estados constitucionais das democracias liberais altamente complexas em que vivemos (e em que hoje já podemos situar Portugal), os instrumentos democráticos ao serviço da luta enunciada são já múltiplos, variados e suficientemente profundos para permitirem que se considere mais útil e eficaz a via da democracia do que a via revolucionária. Os evidentes defeitos e falhas das democracias liberais não são suficientes para justificar o recurso à via armada, só justificável no contexto de regimes de ditadura em que não seja permitida a expressão eleitoral, ainda que imperfeitamente livre.

A utilização da via revolucionária tem cada vez menos espaço, à medida que as democracias se consolidam e desenvolvem. Qualquer tentativa nesse sentido significaria a perda de apoio quase total entre os povos dos países em causa. Seria um desastre total.

A radicalização democrática proposta, contudo, significa, pelo aprofundamento dos instrumentos democráticos que arrasta consigo, pela substituição da formação hegemónica vigente, de natureza elitista e oligárquica, por uma outra de natureza populista, uma verdadeira alteração qualitativa na estrutura social, política e económica, pelo que se enquadra, nesse aspeto, no conceito de revolução, embora não armada, nem violenta. Nem todas as revoluções são violentas.

A via reformista proposta é tão abrangente, tão radical, que a melhor maneira de a caraterizar será como “reforma revolucionária” ou “revolução democrática” ou “revolução reformista”.

Esta perspetiva não andará muito longe da de Mouffe e Laclau, primeiramente exposta por ambos em Hegemonia e Estratégia Socialista (2015, inicialmente publicado em 1987), mas seguramente também não coincidirá integralmente, desde logo porque lhe retira o conteúdo matricial socialista que estes autores sempre imprimiram à sua teoria e que aqui, de todo, é afastado, aproximando-se antes – como já acima foi aflorado – do sentido dado por Benoist. A própria Mouffe, em obra posterior à morte de Laclau, já acima citada (2019) refere, explicitando melhor as dúvidas deixadas pela Hegemonia: “Esta estratégia hegemónica (o populismo, N.A) conta com as instituições políticas com a finalidade de as transformar através de procedimentos democráticos e rejeita o falso dilema entre reforma e revolução. É por isso claramente diferente tanto da estratégia da ‘extrema-esquerda’ como do reformismo estéril dos sociais-liberais, que apenas procuram uma alternância de governo. Poderia chamar-se ‘reformismo radical’ ou, na senda de Jean Jaurès, ‘reformismo revolucionário’, para indicar a dimensão subversiva das reformas e o facto de aquilo que  pretende, ainda que por intermédio de processos democráticos, ser uma transformação profunda da estrutura das relações de poder socioeconómico” (págs. 54/5). É exatamente isto de que se trata. E só por esta via se conseguirá ir introduzindo alterações sistémicas duráveis, estruturais, perenes, de tal modo enraizadas nas culturas políticas da cidadania e sedimentadas nas instituições democráticas dos Estados, que passam a ser inextricáveis, como sucede como o voto universal, a liberdade de expressão, a de reunião e associação, a separação do exercício de poderes, a igualdade entre os sexos, etc.

V – A dificuldade de subordinar o económico ao político

Estamos agora em condições de entrar na parte central do artigo, estabelecidas que estão – embora sumariamente, como não podia deixar de ser – as principais premissas (não todas, que para tanto não há espaço) contextuais do tema.

A principal fragilidade desta teoria da revolução populista por via democrática e reformista – e logicamente a principal força da sua crítica e argumento central da mesma – reside na extrema dificuldade de submeter a instância económica (o sistema económico capitalista, de propriedade privada e de livre empresa) à instância política. Esta dificuldade – existente, na verdade – é contudo ultrapassável, a nosso ver, o que se tentará explicar de seguida.

A teoria da democracia popular – ou populismo, ou democracia integral – não é, como já se referiu, uma teoria económica e muito menos socialista. Como se referiu, limita-se a pretender criar as condições da parte substantiva da organização política duma sociedade humana. O sistema económico será aquele que, em cada Estado, o povo soberano entenda instituir, bem como o mesmo se passará com todas as outras partes adjetivas: saúde, educação, cultura, habitação, etc.

É conhecida a dificuldade de se conseguir uma instância política não dominada pela instância económica, em sociedades de classes. Sempre assim foi, desde a existência dos primeiros Estados e das classes sociais, como vimos. Os Estados são, por natureza e definição, o instrumento de domínio das classes dominadas pelas classes dominantes. Foi para isso que, historicamente, foram constituídos e foi com essa função que se desenvolveram: “o Estado moderno não passa de um comité que administra os negócios da classe burguesa como um todo”. (Marx e Engels, 1998, pág. 10).

Simplesmente, com o passar dos séculos, foram se tornando mais complexos e especializados e as classes dominadas e desapossadas (a cujo conjunto chamamos povo) foram conquistando (ou reconquistando, para ser mais preciso) muito do poder e da influência perdidos, sobretudo na zona sociológica sobre a qual debruçamos o nosso estudo, as democracias liberais da atualidade e o seu estádio superior, os Estados constitucionais,  até se atingirem, como sucede nos nossos dias, Estados constitucionais de direito em que os poderes e direitos populares são de tal forma consolidados que as próprias oligarquias dominantes têm sérias dificuldades em conseguir impor a sua vontade e os seus interesses, ou seja, em que o seu poder está seriamente limitado pelas circunstâncias.  As contradições e conflitos são tantos e tão complexos e especializados que é comum assistir-se – assiste-se aliás diariamente – a situações absolutamente impensáveis há poucas décadas, como, por exemplo, oligarcas presos por fraudes fiscais, trabalhadores a vencerem judicialmente grandes corporações, poderes judiciais independentes e até hostis às elites e oligarquias e propensos à proteção dos mais fracos, impérios financeiros a ruírem sem apoio dos governos (passou-se recentemente em Portugal com a queda do império financeiro do Grupo Espírito Santo, sucumbido e desmantelado sem que o governo português de então sequer o apoiasse, o que representou sem dúvida a maior derrocada corporativa da história económica portuguesa e a que mais consequências trouxe – e ainda está a trazer – na destruição de tecido produtivo de capital nacional e cuja história está por fazer), grandes negócios a soçobrarem perante oposições da cidadania, a banca toda a ter que suportar pesadas perdas no período da pandemia covid-19, em Portugal e um pouco por todo o Ocidente, dobrando-se à vontade dos governos – o que seria impossível acontecer há não muitas décadas – etc., etc.

Nunca, em momento nenhum da História da humanidade, houve uma tal limitação do poder político das classes dominantes, desde o surgimento do Estado, como nos atuais Estados constitucionais das democracias liberais. Reversamente, nunca houve, igualmente, um tão grande poder político e parafernália de direitos nas mãos das classes desapossadas. Constitui esta situação uma inversão da regra e da natureza do Estado? Não, o Estado mantém, fundamentalmente, a sua natureza de instrumento de classe, ao serviço da dominação por parte dos segmentos dominantes em relação aos dominados. Só que em escala muito mais favorável ao povo, no marco da relação de forças, do que alguma vez até aqui. “Conforme observamos antes, a independência relativa do Estado não reduz o seu caráter classista: pelo contrário, a sua relativa independência possibilita ao Estado desempenhar o seu papel classista de um modo apropriadamente flexível. Se ele fosse realmente o simples “instrumento” da “classe dominante”, seria fatalmente inibido no desempenho de seu papel. Seus agentes de fato precisam de certo grau de liberdade para decidir como servir melhor à ordem social existente” (Miliband, 1977, pág. 84). Resumidamente, é este o ponto da situação, repete-se, nos Estados constitucionais de direito atuais, que são todos democracias liberais desenvolvidas e altamente complexas.

Neste processo histórico, os Estados ganharam autonomia relativamente às classes sociais que os dominam e a citação acima de Marx e Engels perdeu acuidade em relação com estas modernas formas atuais de Estado constitucional de direito, presente nas democracias liberais mais desenvolvidas e consolidadas, embora se mantenha plenamente válida para as formas de Estado históricas, desde a sua formação até há algumas décadas atrás, sobretudo após a II Guerra, momento em que as concessões das classes dominantes se aprofundaram, perante a expansão das revoluções comunistas triunfantes, na sequência da Revolução Russa de 1917, com a óbvia intenção de travar as lutas populares e perseverar o modo de produção capitalista e as suas relações produtivas. Ou seja, transigir no acessório, para perseverar o essencial. Mas, com este movimento, abriram a tampa da Caixa de Pandora e o resultado está à vista: o crescimento dos direitos dos cidadãos e dos povos tornou-se imparável e irreversível, levando inclusive a esta autonomização consolidada do Estado, incompleta, é verdade, mas que poderá abeirar-se de se completar. Este processo de autonomização do Estado já tinha sido notado por eminentes autores marxistas: “(…) as relações de produção capitalistas — separação, no quadro da relação de apropriação real, entre o produtor direto e os meios de produção — conferem à superestrutura jurídico-política do Estado uma autonomia específica face às relações de produção” (Poulantzas, 1986, pág. 271). E mais adiante “(…), o Estado capitalista assume uma autonomia relativa face à burguesia (…). Esta autonomia relativa permite-lhe precisamente intervir, não somente com vista a realizar compromissos em relação às classes dominadas, que, a longo prazo, se mostram úteis para os próprios interesses econômicos das classes e frações dominantes, mas também intervir, de acordo com a conjuntura concreta, contra os interesses a longo prazo desta ou daquela fração da classe dominante: compromissos e sacrifícios por vezes necessários para a realização do seu interesse político de classe.” (Poulantzas, op. cit., pág. 281). Este aspeto da autonomização do Estado é crucial para a compreensão da tese defendida neste artigo. Sem o Estado relativamente autonomizado de hoje, e cada vez mais autonomizado, ao ponto de por vezes não representar os interesses das classes dominantes e até os contrariar, (como sucedeu, apenas como exemplos, recentemente, com o Brexit e também com Trump e Bolsonaro) não seria possível defender o que aqui defendemos e que no fundo, constitui um aprofundamento desse processo de autonomização do Estado, até um ponto em que mude a sua natureza e esse ponto é aquele em que o Estado represente os interesses das maiorias, ou seja das classes desapossadas e de todo o povo. Se foi possível chegar até onde se chegou, é obviamente possível, por via reformista, chegar mais longe. Esta realidade é cada vez mais evidente e negá-la, como fizeram alguns autores marxistas (Urtuzuástegui) mais radicais, é puro facciosismo, que nem de ortodoxo pode ser apelidado, uma vez que os próprios Marx e Engels têm referências a este processo de autonomização.

Poderá suceder, num futuro não muito longínquo, que as oligarquias dominantes nos próprios Estados constitucionais de direito das democracias liberais mais desenvolvidas, venham a utilizar tentativas golpistas e violentas, antidemocráticas, quando se sentirem espoliados da centralidade do poder político e lhes surja no horizonte a possibilidade de alteração do modo de produção capitalista e das suas relações de produção (o sistema económico capitalista). Mas os Estados constitucionais estão preparados para isso, sem sequer necessitarem de sair do seu quadro jurídico-normativo: tudo o que sejam tentativas de impor, por via violenta e não democrática, decisões políticas, pode e deve ser reprimido pela força legítima, como já hoje se passa e aplica. “(…) se é possível (…) ampliar a democracia numa sociedade capitalista, através da luta de classes, as formas democráticas são tanto um instrumento quanto um perigo para a burguesia. Embora possam ser usadas para criar ilusões, podem também se tornar o meio pelo qual as massas venham a deter o poder (…)” (Carnoy, 1990, pág. 72).  “Pelo facto de os trabalhadores terem, depois de longas lutas, adquirido o direito à organização sindical, à liberdade de associação, e de terem adquirido, pelo sufrágio universal, a participação no processo de formação da vontade política da sociedade burguesa, podem continuar a desenvolver as suas posições de força de modo que as ações violentas, vindas da classe dominante, na altura de um agravamento das lutas de classe, possam ser evitadas. Transformando o sufrágio universal, instrumento destinado a enganar a classe operária, num instrumento de emancipação, esta pode desenvolver a sua influência sobre a legislação, a sua força nos parlamentos locais e nacionais, a sua influência sobre as instituições de educação e saúde, sobre a segurança social, etc., e reduzir, assim, pouco a pouco, o poder da burguesia. As classes trabalhadoras asseguram assim progressivamente a possibilidade de uma passagem pacífica para a libertação do trabalho da classe dominante” (Collectiv Projecket Klassenanalyse, s/d, pág. 147).

A pergunta que hoje caberia fazer já não seria como pode o económico dominar o político, mas exatamente o contrário: como pode, nestas circunstâncias, o povo deixar-se dominar pelas oligarquias, possuindo nas mãos tantos instrumentos democráticos e tantos direitos efetivos, tendo a seu favor uma relação de forças única e sendo numericamente superior, numa proporção elevadíssima? E a resposta a esta pergunta é muito complexa e vasta e impossível de ser abordada com alguma profundidade no âmbito deste trabalho, pela escassez de espaço disponível. Mas é possível enunciar os seus tópicos.

Os dois pilares fundamentais em que a dominação de classe, no seio dos Estados de direito, sejam eles constitucionais ou não, se apoia para controlar os desapossados – as classes dominadas – são incindíveis e constituem as duas faces duma mesma moeda: ideologia e repressão, ambas sob as mais diversas formas e nos mais diversos graus. Lá, onde a ideologia não chega ou se mostra insuficiente, espreita sempre a repressão. Foi assim desde os primórdios do Estado e assim se mantém até aos nossos dias. Contudo, estes processos tornaram-se de tal modo especializados, técnicos e sofisticados, que a sua complexidade atual – na era dos media e das redes sociais – é de tal modo intrincada e subtil que só vários longos estudos a podem dilucidar. Digamos apenas que, nos Estados constitucionais, a segregação ideológica atingiu níveis nunca vistos, quer em complexidade e subtileza, quer em eficácia e capacidade de influenciação, que se tornou, ela própria, no principal instrumento de dominação, muito mais importante do que a repressão pura e dura (tal como era nas formações políticas inferiores: Estados burgueses do início do liberalismo, Ancien Regime (aristocracia e feudalismo) e sociedades da antiguidade esclavagista. E, como resulta óbvio, neste processo de subtil segregação de ideologia, o dinheiro representa um papel fundamental e quem o tem é o Capital. O desenvolvimento deste tema ficará para um artigo ulterior.

E digamos também e por outro lado, que – como se demonstrou à saciedade durante a recente pandemia de covid19 e noutros casos exemplares que foram citados – que se ensaia hoje já a evidente possibilidade de o político dominar e “domesticar” o económico, o que se reforçará com a continuidade da adoção de instrumentos democráticos – sobretudo de democracia direta – sem necessidade de recorrer a soluções estruturais de violência (bem antes pelo contrário) do tipo da “ditadura do proletariado” referidas por Marx, Lenin e Trotsky (entre muitos outros seguidores do marxismo). A implementação e consolidação do poder político no povo – a democracia popular aqui estudada – permitirá não só esse domínio, como acabará por habituar as classes economicamente dominantes a viverem e conviverem com instrumentos estritos de regulação por parte da instância política, autonomizando completamente as instâncias económica e política, a uma dimensão de submissão do económico ao político,  e à consequente perda da hegemonia política, contentando-se por, uma vez mais, as classes economicamente possidentes, perseverar aquilo que para si é essencial, ou seja, a continuação dum quadro de economia capitalista, embora fortemente regulada.

VI – Democracia direta, democracia representativa e democracia semi-direta

Os instrumentos democráticos e os direitos já consolidadamente em stock nos Estados constitucionais, cedidos pelas classes dominantes, pelas elites e oligarquias, ao longo dos milénios de dominação, perante a luta dos desapossados e dominados, são uma imensa miríade quase inumerável, mas ainda assim insuficiente para atingir o objetivo pretendido, ou seja, a plena soberania popular. Já abordámos o assunto. O tema agora é falar daqueles instrumentos e direitos ainda em falta para que o objetivo seja atingido. E o que falta é seguramente muito mais do aquilo que se conquistou. A imaginação mais fértil teria dificuldade em enumerar uma lista completa de instrumentos democráticos e direitos em falta, práticas políticas, etc., de tal maneira eles são extensos, muitos deles provavelmente ainda nem “inventados”.

Contudo, o que agora se pretende é apenas – tendo em conta esta realidade – falar dum punhado de instrumentos de democracia direta absolutamente imprescindíveis para tal desiderato. E é tendo isto em mente que vamos falar de revogação de mandatos, referendos, plebiscitos, vetos, sondagens, consultas e iniciativa legislativa popular.

A escolha destes instrumentos de democracia direta não é casual: estes instrumentos democráticos são absolutamente essenciais – condição sine qua non – para um regime político de soberania popular. Sem eles, nunca haverá democracia popular, embora o inverso ainda assim possa não ser verdadeiro.

A sua adoção plena, substantiva e não meramente formal, conjugada com o fim da partidocracia, é um passo possível para a continuação da longa caminhada de que falei e um passo de gigante, que conduzirá a importantes alterações no processo de radicalização da democracia.

Teçamos agora algumas considerações sobre a democracia representativa e a democracia direta.

Hoje, nas sociedades de massas, não é racional fugir à democracia representativa, ou, talvez melhor chamada, democracia indireta. A complexidade, o elevado número de pessoas, contando-se nalguns Estados por centenas de milhões, tornam impossível contornar o mandato político. Mas, se a representação é incontornável, isso não quer dizer que não seja viável uma democracia representativa em conformidade com a manutenção da soberania popular. A democracia representativa, desde que eficazmente controlada pelo soberano e munida de instrumentos competentes, é mesmo a única maneira de garantir a soberania popular. O problema não reside na representação, na mediação e no mandato em si, mas na forma como é constituído, executado e controlado. O problema é o regime político transformar o mandato numa transferência de soberania e de poder do soberano para o representante, institucionalizando essa separação e fazendo dessa autonomia o paradigma, em vez de numa simples e efetiva representação pontual, revogável a todo o momento, sujeita a transparência de atuação e a permanente prestação de contas e com uma perfeita definição do âmbito do mandato político. Assim, nestes termos, a representação e o mandato são auxiliares da soberania popular. Doutra forma, como é hoje a democracia indireta ou representativa, trata-se de qualquer coisa que se chama democracia, mas que o não é.

Da forma que se passa na esmagadora maioria das democracias liberais atuais, com raríssimas e honrosas exceções e ainda assim a maioria delas meramente parcelar – à exceção da Suíça, que sendo substancial, não é integral – o que há é um simulacro de democracia, com uma verdadeira transferência de soberania do soberano para o mandatado representante, como se disse. Ou seja, uma completa subversão do instituto, com o intuito de perpetuar a partidocracia.  E de impedir o soberano de exercer a soberania.

De facto, o mandato é assim que deve ser interpretado, em função desta teoria (do mandato imperativo), embora evidentemente com a conferência aos representantes de alguma latitude de interpretação do mandato – incontornável face à complexidade da atualidade – mas sempre dentro dos limites conferidos, ou seja, indo beber alguns elementos à teoria da representatividade. Talvez o ideal seja chamá-lo de “mandato semi-imperativo”.

A esta conceção de democracia representativa, munida de instrumentos fundamentais da democracia direta – ela própria inaplicável na atualidade, como se viu – como o recall, o referendo, a iniciativa popular, o veto, o plebiscito, o mandato semi-imperativo (com uma rigorosa definição dos seus termos e das latitudes interpretativas admitidas e com obrigação de consulta ao eleitorado em caso de dúvida) e outros instrumentos de similar thelos, usa designar-se como democracia semi-direta. Ou seja, a democracia semi-direta não é mais que uma versão aprofundada da democracia representativa e do Estado constitucional, radicalizada pela presença de elementos característicos da democracia direta. É uma forma híbrida de pendor marcadamente de democracia direta. Sendo o Estado constitucional, nas suas versões conhecidas, incompatível com a democracia direta (Luque, 1977, págs. 311 a 313), poderá, contudo, absorver no seu marco instrumentos desta e dessa absorção resultará aquilo a que chamamos democracia semi-direta.  Noutro artigo veremos em que medida é que esta evolução do Estado constitucional não significará ainda – apesar de se aproximar – o Estado constitucional de democracia popular.

VII – Conclusões e prospetiva

Na sequência deste e dos dois artigos que o antecederam, está preparada a contextualização para o estudo que se seguirá dos instrumentos principais, acima enunciados, de democracia direta a incorporar nos Estados constitucionais, após findada a hegemonia monopolística partidocrática e para a abordagem e caraterização dum Estado – no marco constitucional social e de direito – que constituirá uma mudança de paradigma das sociedades elitistas e oligárquicas para as de novas hegemonias  populistas ou Estados de democracia popular.

Será esse o conteúdo dos trabalhos seguintes.

Referências bibliográficas:

Benoist, Alain de,‘Le Moment Populist’, Pierre-Guillaume de Roux, Paris, 2017.

CARMONA, José,

– ‘A Partidocracia e o seu Papel nas Democracias Liberais Contemporâneas’, Universidades de Évora e Açores, 2023.

– ‘A Transição da Partidocracia para a Democracia Popular nas Democracias Liberais Contemporâneas’, Universidades de Évora e Açores, 2023.

CARNOY, Martin, Estado e teoria política. 3. ed. Campinas: Papirus, 1990.

COLLECTIF PROJECKT KLASSENANALYSE, ‘Ditadura do proletariado na Europa Ocidental?’, in: BALIBAR, Étienne e POULANTZAS, Nicos, ‘O Estado em discussão’, São Paulo, edições 70, s/d.

ERREJÓN, Íñigo e MOUFFE, Chantal, ‘Contruir Pueblo’, Icaria Editorial, Barcelona, 2016.

LACLAU, Ernesto e MOUFFE, Chantal, ‘Hegemonía y Estrategia Socialista’, Siglo XXI de España Editores, Madrid, 2015 (1987).

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade, ‘Fundamentos de metodologia científica’, 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.

LUQUE, LUIS AGUIAR DE, ‘Democracia Direta y Estado Constitucional’, Edersa, Madrid, 1977.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, ‘Manifesto do Partido Comunista’, in: REIS FILHO, Daniel Aarão, «O manifesto comunista 150 anos depois’, Rio de Janeiro, Contraponto, São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.

MICHELS, Robert, ‘Los Partidos Políticos’, Amorrortu, Buenos Aires, 1979, (1908).

MILIBAND, Ralph, ‘Marxismo e política’, Rio de Janeiro, Zahar, 1977.

MOUFFE, Chantal, ‘Por um Populismo de Esquerda’, Gradiva, Lisboa, 2019.

MUDDE, Cas, ‘Populismo na Europa: das margens ao mainstream’, https://lidermagazine.sapo.pt/populismo-na-europa-das-margens-ao-mainstream/, 2021.

POULANTZAS, Nicos, ‘Poder político e classes sociais’, 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

Universidades de Évora/Açores, Évora, doutoramento em Teoria Política, Relações Internacionais e Direitos Humanos, trabalho na cadeira de Teoria da Cidadania e Direitos Humanos nas Sociedades Complexas, junho de 2023.

José Carmona

MANIFESTO DA NOVA SOCIAL-DEMOCRACIA PORTUGUESA

Nova Social – Democracia baseia-se em dois pilares fundamentais:

O Estado de Direito Democrático

e

O Estado Social.

I – A democracia e o novo estado de direito democrático

O Estado de Direito Democrático, em Portugal, está já suficientemente consolidado para não ser um obstáculo ao seu próprio aperfeiçoamento e aprofundamento, de que carece, contudo, em vários planos e setores.

Nova Social-Democracia defende a manutenção do ideário democrático plasmado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem como assenta em todas as conquistas sobre ele alcançadas, no domínio da democracia representativa, mas entende – em consonância com o clamor dos povos de todo o mundo – que é chegado o momento de aprofundar esses princípios, esse ideário e essas conquistas, encetando a transição para sociedades verdadeiramente democráticas e populares, ultrapassando as baias da democracia formal e representativa e abrindo a era da democracia substancial, direta e participativa. Em suma, passar do estado de direito democrático tradicional e partidocrático para um Novo Estado de Direito Democrático.

Nova Social – Democracia entende que as sociedades humanas vivem hoje um novo paradigma civilizacional gerado pelo acesso massivo à informação e pela capacidade massiva de intercomunicação entre todos os seres humanos, permitidos pelas novas tecnologias da informação e comunicação, o que alterou profundamente a capacidade de intervenção social e política dos cidadãos e, consequentemente, o seu desejo e vontade de protagonismo e participação nos destinos coletivos.

Este novo tipo de relações sociais exige um novo paradigma democrático, um modelo novo de democracia, que necessariamente terá que aprofundar a intervenção cidadã na determinação dos seus próprios destinos.

Não mais será possível manter este modelo de política antiga, montesquiana,  ainda dominante,  de formalidades e elitismos, nascido das alterações revolucionárias do séc. XIX e que se baseia em partidos elitistas e fechados, encerrados sobre si próprios e alheados das populações e das massas cidadãs, que monopolizam os sistemas políticos e eleitorais, vedando aos povos o seu irreprimível desejo de participação direta na condução dos seus próprios destinos e tudo fazendo para que essa participação não ultrapasse a ida às urnas de quatro em quatro anos e pouco mais e baseado ainda em instituições anquilosadas e antiquadas que se caraterizam pelo afastamento sistemático entre a classe política dominante e beneficiária deste sistema e as populações subjugadas.

Nova Social – Democracia quer uma política nova e quer uma nova democracia integral e aprofundada. Não quer proibir os partidos políticos, mas quer remetê-los ao seu papel: o caixote do lixo da História. Quem quiser participar em partidos, não deverá ser impedido de fazê-lo, mas deverá concorrer em pé de total igualdade com qualquer outra forma organizativa cidadã, inclusive com simples grupos de cidadãos livres, organizados exclusivamente para uma determinada eleição ou para apenas uma determinada intervenção.

Nova Social – Democracia entende que o domínio monopolista dos partidos sobre a política – a nefanda partidocracia –  e sobre as instituições, é a principal causa do atual caótico e injustíssimo estado de coisas, subvertendo as democracias, fazendo campear a brutal corrupção e tráfico de influências que carateriza as sociedades partidocráticas e gera castas sociais consolidadas de classes políticas corruptas, venais, antipopulares e alheias aos cidadãos, cujo único objetivo é perpetuarem-se no poder e afastarem dele os povos, enriquecendo à custa dos dinheiros públicos, que a todos pertencem, como tem sido bem visível no nosso país e por todo o mundo.

DEMOCRACIA INTEGRAL E NÃO DEMOCRACIA LIMITADA E CAPTURADA PELOS PARTIDOS.

A NOVA SOCIAL – DEMOCRACIA QUER PÔR FIM

À PARTIDOCRACIA REINANTE

E QUER DEVOLVER O PODER

AO SEU LEGÍTIMO TITULAR:

O POVO, SOBERANO ÚNICO E ABSOLUTO!

Para que este objetivo possa ser atingido, é necessária uma profunda alteração constitucional que contemple não só o fim do domínio dos partidos sobre o sistema político e sobre o sistema eleitoral, mas que abra estes à intervenção direta cidadã em todas as estruturas da política, das eleições e da formação do poder político. Os cidadãos poderão organizar-se livremente, como melhor entenderem, da forma que quiserem, para concorrerem ou promoverem candidaturas aos diversos órgãos de poder, de forma mais alargada ainda do que aquela que existe já nas eleições autárquicas.

Por outro lado, é mister ainda que os deputados do povo e os seus representantes políticos em geral, a todos os níveis, estejam o mais próximo possível dos cidadãos que os elegem e de quem são meros mandatários, num sistema de pequenos círculos – eventualmente coexistente com um círculo nacional geral – e, sobretudo, respondendo permanentemente perante os seus eleitores, os quais, como seus soberanos, poderão a todo o tempo destituí-los, através dum processo de “impeachment” pré-estabelecido. Isto deve ser válido quer para os deputados do parlamento nacional, quer para as câmaras e assembleias municipais, quer até, com as necessárias adaptações, para o próprio presidente da república, que deverá também estar sujeito a um processo de “impeachment” popular, bem como para todos os titulares de órgãos de soberania que representem o povo e dele tenham mandato.

Mas a Nova Social – Democracia não se satisfaz com o fim da partidocracia e com a participação direta dos cidadãos no processo político e eleitoral e com a responsabilização política permanente dos representantes do povo e a possibilidade de revogação dos seus mandatos a todo o tempo.

Nova Social – Democracia quer mais.

O referendo, tal como já existe em Portugal, tem que ser ampliado e aprofundado.

Nenhuma matéria pode ser subtraída ao referendo de iniciativa popular, tal como nenhuma matéria pode ser subtraída à soberania popular, nem tal faz o mais pequeno sentido, incluindo revisões constitucionais.

Por outro lado, a lei ordinária e a constituição, deverão estabelecer um conjunto de matérias de exclusiva competência referendária e que deverão ser sempre obrigatoriamente submetidas à decisão direta do soberano, como por exemplo os tratados internacionais relevantes.

Finalmente, deverá descer o número de subscritores de referendo de iniciativa cidadã para um número não superior a 50 mil.

No caso de consulta com força de alteração constitucional, o número de assinaturas deverá ser de 100 mil.

A NOVA SOCIAL – DEMOCRACIA DEFENDE O ALARGAMENTO E APROFUNDAMENTO DO REFERENDO, TORNANDO-O OBRIGATÓRIO EM DETERMINADAS MATÉRIAS E NÃO SUBTRAINDO NENHUMA AO REFERENDO DE INICIATIVA CIDADÃ.

Nova Social – Democracia, por defender uma democracia integral, exige a submissão do todos os setores dos poderes do estado e de exercício da soberania a processos de legitimação política, por voto universal, secreto, direto e popular.

Nenhum setor do poder de estado, que se reflita em exercício de soberania, poderá estar isento de legitimação direta e eleitoral, semelhante ao processo eleitoral do parlamento, do presidente da república e das autarquias.

Isto significa uma mudança estrutural profunda no sistema judicial, que nas nossas sociedades funciona corporativamente e em roda livre e que, apesar de reivindicar a representação do povo, na verdade não é por ele mandatado.

Este défice democrático está patente na maioria dos países democráticos, incluindo Portugal, mas é verdadeiramente um resquício medieval sem sentido num novo modelo democrático integral.

Se o povo é soberano – o único soberano – não se admite que haja todo um setor dos poderes de estado que lhe seja alheio e que lhe esteja subtraído.

Nova Social – Democracia pugna assim por um único Conselho Geral do Poder Judicial, eleito democraticamente na plenitude dos seus membros, podendo candidatar-se qualquer cidadão maior e na posse dos seus direitos cívicos e políticos, tal como se candidatam a deputados do parlamento nacional e sendo o seu presidente escolhido pelos seus membros de entre si.

Esta assembleia deverá superintender a todo o setor judiciário, detendo plenos poderes e definindo o seu funcionamento, assumindo as atuais funções de todos os conselhos existentes, como o CSM, o CSMP e o CSTAF.

O GGPJ assumirá ainda, na proposta da Nova Social – Democracia, as funções do Tribunal Constitucional, que desaparecerá, e poderá avocar qualquer processo concreto do sistema e julgá-lo, funcionando ainda como última instância de recurso nas matérias de maior importância e nas constitucionais.

Os deputados judiciários deverão estar sujeitos a um mecanismo de “impeachment” em tudo semelhante aos dos deputados parlamentares.

A NOVA SOCIAL-DEMOCRACIA DEFENDE A SUBMISSÃO DO SETOR JUDICIAL A UM PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO E ESCRUTÍNIO POPULARES POR ELEIÇÃO DIRETA E UNIVERSAL DUM CONSELHO GERAL DO PODER JUDICIAL.

O fim da partidocracia e as candidaturas de cidadãos, o alargamento do âmbito do referendo de iniciativa cidadã e a sua obrigatoriedade nos casos mais relevantes para a nação, a criação dum CGPJ eleito, superintendendo a todo o setor judicial, são apenas alguns exemplos mais marcantes do novo modelo de democracia integral defendido pela Nova Social – Democracia, o qual, contudo, não se esgota aqui, antes pugnando, em geral, por uma reforma contínua do regime democrático, sempre no sentido do seu aprofundamento e aperfeiçoamento e sempre com o objetivo da plena participação cidadã, progressivamente, de modo tão direto e tão abrangente quanto possível, uma reforma permanente.

As novas tecnologias abrem diariamente horizontes insuspeitados com vista à participação dos cidadãos na determinação das suas vidas e dos destinos coletivos das sociedades em que se inserem.

O processo de voto eletrónico, já ensaiado, deverá ser aprofundado e generalizado a todo o país e a todos os atos eleitorais, designadamente aos referendos, devendo imediatamente começar a estudar-se a implementação, inicialmente ao nível concelhio, de consulta sistemática e periódica aos munícipes sobre os assuntos que lhes dizem respeito, de modo a que participem, através de plataformas eletrónicas públicas, nas decisões camarárias e das freguesias.

Esta submissão dos assuntos autárquicos ao voto cidadão deverá iniciar-se em projetos-piloto, inicialmente apenas com efeitos consultivos, mas tendo que se expandir rapidamente para todo o território nacional e passando a ter caráter vinculativo num curto espaço de tempo.

A NOVA SOCIAL – DEMOCRACIA DEFENDE O LANÇAMENTO DE PLATAFORMAS ELETRÓNICAS PÚBLICAS COM VISTA À VOTAÇÃO SISTEMÁTICA E PERIÓDICA DOS CIDADÃOS EM CONSULTAS SOBRE OS ASSUNTOS COLETIVOS DAS FREGUESIAS, DOS CONCELHOS, DAS REGIÕES E DA NAÇÃO.

Por outro lado, este processo de aproximação de eleitos e eleitores, de substituição paulatina mas irreversível da democracia representativa pela democracia direta e participativa, por uma Nova Democracia, orgânica e substantiva e não meramente formal como hoje, implica a adoção de círculos administrativos mais reduzidos e homogéneos, de modo a melhor resolverem os problemas populares concretos. E isso só é possível com a criação de regiões administrativas especiais, sedimentadas em termos históricos e sociológicos, o que em Portugal corresponde basicamente às 5 regiões conhecidas, para além das já existentes regiões autónomas: Algarve, Alentejo, Lisboa e Vale do Tejo, Beiras/Centro e Norte, correspondentes às atuais NUT II.

Nova Social-Democracia é portanto, e em suma, um novo movimento político populista, no sentido de que todo o poder pertence ao povo em si – e não aos seus representantes – o qual decide sem recurso sobre todas as matérias que digam respeito à vida política da sociedade, sendo legítimas toda e quaisquer decisões que tome em consonância com as regras democráticas, democraticamente instituídas. Em suma, mudar do antigo regime para um Novo Regime.

A NOVA – SOCIAL DEMOCRACIA É A FAVOR DO PROCESSO DE CRIAÇÃO DE 5 REGIÕES ADMINISTRATIVAS, DE MODO A APROXIMAR OS CIDADÃOS DA RESOLUÇÃO DOS PROBLEMAS QUE OS AFETAM.

II – O plano supranacional

No plano supranacional, a Nova Social – Democracia defende a manutenção de Portugal na União Europeia, embora pretenda que esse facto seja referendado pelo povo soberano, o que nunca aconteceu até hoje.

A presença na U.E. que se defende é na forma confederada, como atualmente, e com manutenção dos estados nacionais existentes.

Portugal nunca poderá, no contexto mundial e das nações, ser nada nem ninguém se não se associar a outros estados nacionais que lhe estejam histórica e culturalmente próximos.

Os defensores do isolamento português, neste contexto do 21º século, são no fundo os defensores da subalternização e da submissão de Portugal aos poderes imperiais e das potências regionais do mundo de hoje. Não são só reacionários – são antipatriotas. Portugal, só e sem capacidade militar nem económica, nunca poderá afirmar no contexto internacional os seus valores, a sua tradição, a sua história, as suas aspirações. Isto só é possível no marco duma união supranacional com outras nações que nos são próximas. Sob a falsa bandeira dum patriotismo serôdio, mais não querem esses reacionários do que vender-nos a pataco aos poderes dos impérios. Só a unidade supranacional nos salvará e permitirá a nossa sobrevivência enquanto nação e enquanto estado. Essa unidade só é exequível e eficaz, se o for no marco de nações irmãs.

O projeto político nacional exige, portanto, a unidade supranacional que nos trará a força.

A U.E. é a expressão já ensaiada – mal e parcamente, é verdade – dessa unidade com nações irmãs no seio da Europa onde nascemos e da qual somos parte consubstancial e integrante.

Mas a Nova Social-Democracia também neste domínio exige mais do que a atual unidade confederativa.

Exige, desde logo, o fim do processo invertido que tem caraterizado a União, up-side down, não democrático ou fracamente democrático, burocratizado e totalmente alheado dos povos.

Exige uma União Europeia democrática e popular. Exige a extensão à União dos mesmos princípios de aprofundamento da democracia acima defendidos para o nosso país: democracia direta, orgânica, substantiva e participativa, tanto quanto possível e sempre que possível, aumentando progressivamente.

Tudo isto no contexto do respeito pelos estados e pelas nações integrantes da União, tal como o estavam quando a integraram.

Nova Social-Democracia defende, no marco do aprofundamento da União, a manutenção de Portugal na moeda única, com a concomitante criação de mecanismos políticos que equilibrem os desequilíbrios injustos provocados aos países mais frágeis, como Portugal, e que tanto sofrimento já causaram ao nosso povo.

Compreendendo, contudo, a importância vital da existência duma moeda poderosa que defenda a União e faça frente ao Dólar e ao Yuan, a Nova Social-Democracia exige a criação de mecanismos compensatórios para estes mesmos países.

Por outro lado, e pelas mesmas razões, a Nova Social-Democracia defende também, no contexto dum mundo e dum momento particularmente perigosos, a criação, no marco da União, de forças armadas unificadas, dotadas de orçamentos abrangentes e eficazes, capazes de se armarem e organizarem rapidamente para estarem prontas para defender os estados membros em qualquer circunstância e, sobretudo, capazes de impor a segurança externa face a qualquer ameaça.

Só assim a Europa poderá recuperar o seu papel central no concerto das nações, só assim a Europa poderá pôr um fim à humilhação e submissão a que tem estado sujeita face ao imperialismo americano, às mãos dos nossos governos vendidos e mais interessados nos negócios das elites oligárquicas sem-pátria que representam, bem como perante os contra poderes russo e chinês que nunca, seguramente, terão a mais pequena contemplação pelos nossos interesses específicos. Um mundo multipolar não existe sem uma Europa fortemente armada, capaz de se defender, e um mundo multipolar é a melhor garantia da paz mundial.

Estes 3 pilares de aprofundamento da União (democracia, moeda, forças armadas) implicam e requerem que a representação diplomática da U.E. seja, em domínios restritos, mas necessariamente em questões que envolvam o Euro e a segurança e defesa, expressas a uma só voz, o que leva à existência de 2 níveis de negócios estrangeiros: os de cada país, como hoje, e os que incluam estas matérias, que terão de ser exclusivamente da União.

A NOVA SOCIAL-DEMOCRACIA DEFENDE A MANUTENÇÃO DE PORTUGAL NA UNIÃO EUROPEIA (SUJEITA A REFERENDO), DEFENDE O APROFUNDAMENTO DA DEMOCRACIA NOS PROCESSOS ELEITORAIS E NAS INSTITUIÇÕES DA UNIÃO, DEFENDE A INCLUSÃO NO EURO, COM MECANISMOS DE COMPENSAÇÃO, E A CRIAÇÃO DE FORÇAS ARMADAS ÚNICAS NA EUROPA E DUMA REPRESENTAÇÃO DIPLOMÁTICA ÚNICA PARA SEGURANÇA, DEFESA E MOEDA.

Contudo, no âmbito dum projeto político nacional que a Nova Social-Democracia pretende trazer para o panorama político português, há muito dele desprovido, o processo de unificação supranacional portuguesa não se deve limitar à União Europeia, mas estender-se a outras unidades naturais que a história e a geografia nos impõem. Portugal é uma unidade própria, multidimensional: história, vivência, contributos ao mundo, genética, sentimento, música, cultura, muito nos separa de outras nacionalidades. E assim queremos continuar a ser.

Neste âmbito, Portugal deverá criar todas as condições para a associação supranacional com os povos de Espanha no marco dum iberismo nunca consumado: uma união ibérica confederada, livre e consentida. Nenhum povo em todo o mundo é mais consubstancial à nossa natureza do que os povos de Espanha. Nem os brasileiros, nem os cabo-verdianos. A unidade histórica entre todos, nunca conseguida, morreu às mãos do imperialismo regional castelhano que nunca almejou submeter os portugueses e impediu – como a questão catalã demonstra – que os outros povos de Espanha desenvolvessem a sua dimensão nacional plenamente, ao submetê-los pela força, como sempre tentou com Portugal.

A união ibérica, democrática, popular e consentida, sob a forma confederada, poderá realizar o sonho dos povos de Espanha de criarem, pela primeira vez, uma potência mundial de irmãos.

Mas as caraterísticas riquíssimas da nossa história e da nossa cultura impelem ainda a um terceiro nível de unidade política: com os países de língua portuguesa. Brasil, Cabo-Verde, Angola, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, Guiné, Timor.  Os níveis de integração divergirão sem dúvida, mas um nível de âmbito económico, na senda do já existente linguístico, é ingente e urgente concatenar num plano político nacional.

Nova Social-Democracia inscreve assim, nos desígnios políticos portugueses, a associação com todos os países de língua portuguesa a níveis mais profundos do que os existentes, sobretudo económicos e sociais, podendo mesmo essa associação aprofundar-se, de forma paulatina e gradativa, com outros países da CPLP, devendo esse movimento integrativo iniciar-se, por questões históricas e de proximidade cultural, genética e territorial, com Cabo-Verde, se assim for o desejo referendado de ambos os povos, no âmbito duma confederação luso-africana.

A NOVA SOCIAL-DEMOCRACIA PROPUGNA A CRIAÇÃO DUMA UNIÃO CONFEDERADA IBÉRICA, ENTRE TODOS OS POVOS DE ESPANHA, DEMOCRATICAMENTE CONSENTIDA.

E PROPUGNA AINDA O APROFUNDAMENTO DA CPLP E A SUA CONVOLAÇÃO NUMA GRANDE ASSOCIAÇÃO ECONÓMICA E SOCIAL ENTRE TODOS OS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA.

IV Um manifesto não é um programa de governo. Um manifesto limita-se a explanar os traços fundamentais duma ideologia, dum programa político e das suas propostas.

Um manifesto está para um programa de governo, como a lei constitucional está para a a lei ordinária.

Por essa razão, toda a paramenta de assuntos concretos que poderiam caber num programa de governo, não cabem num manifesto, por mais importantes que sejam, e muitos deles são.

As questões da educação, da habitação, da saúde, etc., da maior relevância, não cabem num manifesto. Tal com as chamadas “causas fraturantes”, o feminismo, a política de género, a questão migratória, o racismo, o ambiente, etc.

Contudo, dada a relevância que alguns destes temas atingiram nas nossas sociedades, a Nova Social-Democracia deverá marcar aqui aquelas que são as posições fundamentais que defende, sempre na perspetiva de que a decisão compete ao povo e as decisões democraticamente assumidas pelo povo são as que deverão ser aplicadas, ainda que sejam contrárias àquelas que o novo movimento social-democrata defenda. A democracia é a parte substantiva da equação.

Deixando os direitos sociais para o respetivo capítulo, abordam-se de seguida as grandes causas da atualidade.

III – As grandes questões nacionais (e internacionais) momentâneas

Demografia – O crescimento demográfico exponencial, por um lado, e a automatização por outro, constituem um dos mais sérios desafios que se coloca às sociedades humanas.

Continuar a deixar as populações crescerem sem que haja sustentabilidade nesse crescimento, fruto da redução das necessidades de mão de obra, torna-se num evidente logro que está já a conduzir a situações insustentáveis.

Uma economia automatizada produz com pouca necessidade de intervenção humana, mas com necessidade acelerada de utilização de recursos e matérias primas.

Nova Social-Democracia entende, portanto, que a questão do crescimento demográfico e do seu controlo terá que começar a ser ponderada e monitorizada, concomitantemente com as necessidades de mão de obra e criação de emprego das economias e com a existência de recursos e matérias primas.

Isto poderá vir a implicar a adoção de medidas políticas que visem o controlo demográfico. O objetivo das sociedades humanas é a felicidade dos seus membros e não a criação de exércitos de reserva dum capitalismo selvagem (compostos por multidões de miseráveis totalmente descartáveis) que pouco ou nada se interessa pela sustentabilidade dos recursos e pela felicidade das pessoas, mas apenas com a sua insaciável cupidez.

Migrações – Ligada à questão demográfica está a questão das migrações internacionais, mormente da imigração para os países europeus por parte de massas de cidadãos oriundos do Magrebe, países do Oriente Médio e outros países subsaharianos.

Embora o problema não assuma particular dimensão em Portugal, por não ser um país de destino imigratório, a verdade é que constitui um problema central na política europeia do séc. XXI. E isso faz com que seja também um problema português.

É verdade que grande parte do atraso económico dos países emissores de imigração para a Europa são países que foram colonizados por países europeus (em cujo movimento histórico Portugal se integrou) e é verdade que esse atraso histórico se deve, assim, em grande parte à responsabilidade colonial. Muita da pobreza de que padecem é culpa direta da colonização imposta pela força das armas, pelo tráfico de escravos, pela espoliação das suas riquezas nacionais. E muita da riqueza e do desenvolvimento de que beneficiam os países europeus (Portugal incluído) é fruto da espoliação a que os submeteram.

Isto constitui os países europeus, por todas as razões históricas e até pela proximidade temporal a esses acontecimentos, na obrigação moral e ética de contribuírem para o resgate da pobreza que provocaram e de que beneficiaram.

Também é verdade que todos os seres humanos são iguais e merecem o mesmo respeito por essa condição inalienável, a mesma ajuda e proteção.

Mas apesar de isto tudo, e até por isso, nunca será do modo atabalhoado, irracional, desordenado e em jeito de ato de contrição sem sentido, a que temos vindo a assistir, que a Europa pagará as suas responsabilidades e obrigações e contribuirá para a ajuda dessas massas de deserdados e despossuídos. Bem antes pelo contrário.

O problema só poderá ser resolvido de cabeça fria, racionalmente e sem sentimentos de culpa espúrios e inconsequentes. O problema só poderá ser resolvido controlando a imigração e submetendo-a a um princípio basilar: só poderão vir de forma ordenada, à medida que poderem ser integrados e que não provoquem, nos países europeus, as ruturas a que assistimos. As populações vão reagir – já estão a reagir – e a continuação desta lassidão e permissividade sem sentido provocará, a muito breve prazo, reações ainda mais duras, autênticos pogroms e um sofrimento indizível, cujas consequências não se podem prever.

A solução do problema estará portanto, como sempre, não numa solução casuística, como tem vindo a ser feito, mas numa solução holística, que passará pela contenção – pela força, se necessário – da invasão descabida em que está submerso o nosso continente e provavelmente até pela repatriação de muitos dos últimos que vieram, pela integração dos que estão há mais tempo e em condições de serem integrados e ainda por uma ajuda programada e eficiente à criação de condições de vida nos locais de origem, de modo a desenvolvê-los e permitir aí a existência de economias autossuficientes. E implicará o fim absoluto da interferência neocolonial de estados e empresas nesses países, sobretudo a norte-americana, mas também a europeia.

O que está a acontecer não será o fim da Europa, porque a Europa se defenderá e provavelmente não da melhor maneira, mas poderá significar uma mudança radical no padrão de vida económico, cultural e social europeu no pior sentido. E isso não será bom para ninguém e, sobretudo, não ajudará em nada os imigrantes.

Segurança interna – A segurança dos cidadãos e a ordem interna são condições essenciais do desenvolvimento pacífico da vida social e da felicidade dos povos.

A legitimação dos poderes de estado, designadamente do setor judiciário, e a fluidez dos processos democráticos propostos pela Nova Social-Democracia, não significam, bem antes pelo contrário, qualquer concessão à criminalidade, à desordem e à lassidão no controlo dos comportamentos ilegais e antissociais que prejudicam as pessoas e os bens.

A ordem interna é um fator primordial de confiança.

Um estado social-democrata é um estado ordenado, pacífico, de supremacia do direito, de igualdade perante a lei, de funcionamento das instituições policiais e judiciais, por maioria de razão. Todo o poder de que disporão, terão que o usar na prossecução duma democracia popular em ordem, com toda a legitimidade democrática de que estarão munidos e submetidos a um estreito escrutínio popular, que não permitirá, em caso algum, os atropelos e abusos a que tantas vezes assistimos nos regimes partidocráticos.

Uma justiça penal da Nova Social-Democracia, verdadeiramente democrática e popular, não é compatível com abusos seja de quem for, cidadãos, políticos, juízes ou polícias.

A razão máxima dum sistema penal da Nova Social-Democracia é punir todos os crimes e todos os criminosos, com a maior equidade e rapidez possíveis, exemplarmente, mas também agir justamente, quer na defesa das vítimas, quer na recuperação de criminosos, quando exequível.

Assim como se admite – e propugna – pelo aumento da pena máxima de prisão efetiva, limita-se a utilização da prisão preventiva, a criminalização estúpida e abusiva da tendência penalista das últimas décadas, substituindo-se, sempre que possível, crimes por contraordenações, prisão por outras penas mais eficientes e menos escabrosas, tortura em celas que são escolas de crime, por trabalho comunitário, etc.

Feminismo, políticas de género, defesa dos animais – A Nova Social-Democracia entende que as questões relacionadas com a desigualdade no tratamento das mulheres e o combate à cultura tradicional da supremacia do homem, são questões da maior importância nas nossas sociedades, a merecerem especial foco social e atenção governamental permanente, no sentido de atingir a plena igualdade entre homens e mulheres e de combater a violência doméstica, um grande flagelo de todos os tempos e ainda não extirpado dos hábitos sociais do nosso tempo. A Nova Social-Democracia não transigirá nem um minuto, nem um milímetro, na obtenção deste desiderato e na repressão dos comportamentos antissociais e criminosos.

Isto não significa, contudo, que a Nova Social-Democracia alinhe nas modas e nos folclores radicais que se tornaram infelizmente tão vulgares e que, na verdade, são contraproducentes e só conduzem ao afastamento desta luta de pessoas equilibradas e sensatas, que no fundo são a maioria dos cidadãos.

A posição é a mesma relativamente à questão dos direitos dos animais, subscrevendo a Nova Social-Democracia as tendências de aprofundamento jurídico e social deste tema, de proteção dos animais, mas também numa perspetiva não folclórica, de prudência e aprendizagem, sem criação de ruturas desnecessárias, que também não conduzem, na maior parte dos casos, ao alcance dos objetivos pretendidos.

No fundo, uma política de bom senso e de boa vontade.

Ambiente, natureza, ecologia e clima – As questões relacionadas com a ecologia e o ambiente são efetivamente das que mais preocupam e mobilizam os cidadãos e, diga-se, com razão. O brutal aumento da população mundial, a escassez de recursos, a cada vez mais complexa e especializada industrialização e o uso intensivo de produtos químicos, a criação de gado, etc., são efetivamente questões da maior importância e com um forte impacto na vida das comunidades, pelo que é compreensível que tenham uma forte presença no nosso quotidiano e tenham que ser tidas em permanente consideração pela política e pelos governos.

A posição da Nova Social-Democracia sobre estes temas é de grande abertura e simpatia, na defesa dos interesses populares e duma enorme atenção a tudo o que possa prejudicar a vida das pessoas. Nunca a Nova Social-Democracia escamoteará, como o fazem tão repetidamente os partidos de poder, o interesse das corporações e lobbies em detrimento do interesse popular. Quando for necessário desmontar os interesses empresariais, nem que seja por mera prudência, de modo a não pôr em causa as populações, um governo da Nova Social-Democracia não hesitará um segundo. A economia, para a Nova Social-Democracia, não  tem a primazia, quem a tem são as pessoas. A economia deve estar sempre subordinada a esse interesse e ser dele subsidiária.

Assim, e sempre em sintonia com a ciência e as suas confirmações, a política correta é ir tendo sempre em consideração essas confirmações e até fortes suspeitas e ir guiando as políticas públicas pelo superior interesse popular, com eficiência e prudência.

IV – O estado social e a nova economia democrática e popular

O estado social, como já se disse, é o segundo pilar da Nova Social-Democracia.

Como tal, assume importância constitucional e fundadora no projeto social da Nova Social-Democracia, que não poderá existir sem um estado social robusto, justo, equitativo, genuíno, abrangente, verdadeiramente ao serviço de todos aqueles que dele necessitem.

O estado social da Nova Social-Democracia não se limita a ser uma réplica do estado social social-democrata tradicional, tal como o conhecemos, mesmo nos países sociais-democratas mais avançados, como os escandinavos.

Impulsionado pela democracia popular integral atrás defendida, e pelo domínio absoluto da política populista sobre a economia, como veremos, o Novo Estado Social constitui também uma mudança de paradigma relativamente ao estado social tradicional.

Nas nossas sociedades, o dinheiro (capital) representa um papel central. De tal modo importante, que é determinante em relação à vida de todos os cidadãos, como ninguém duvidará.

É um sofisma hipócrita falar-se de liberdade nas sociedades de economia neoliberal. Trata-se de pura ideologia segregada pelas elites beneficiárias do iníquo sistema neoliberal e pelos seus capatazes políticos, com o único objetivo de confundir e enganar os povos, levando-os ao engodo de que todos têm oportunidades iguais e todos são iguais perante a lei e assim conseguir recolher dos povos a aceitação da iniquidade e da injustiça reinantes, de modo a que se não revoltem e permitam a perpetuação e reprodução do neoliberalismo fascizante, que como é bem visível, beneficia cada vez menos pessoas e prejudica cada vez mais, num movimento concentracionário do capital e do dinheiro, absolutamente imparável e totalmente injusto.

Nova Social-Democracia pretende pôr termo a esta hecatombe mundial do “capitalismo” neoliberal.

Não se pense, contudo, que este movimento defende o socialismo. Puro engano.

Nova Social-Democracia NÃO defende o socialismo.

Nova Social-Democracia inscreve-se no marco da defesa duma economia capitalista e não duma economia socialista.

Nem sequer do eufemisticamente chamado “socialismo democrático” que aliás de socialismo não tem nada e de democrático tem muito pouco.

O socialismo é o modo de organização duma economia em que a propriedade sobre os meios de produção não pode ser privada, mas apenas coletiva e onde portanto aos cidadãos é vedada a liberdade de empresa.

O capitalismo é o modo de organização duma economia em que os meios de produção podem ser privados, e são-no ampla e maioritariamente, embora possam também ser estatais, ou coletivos, em casos especiais, como sejam os setores fundamentais da economia e em que os cidadãos têm liberdade de empresa.

O “socialismo” do PS não é, portanto, nenhum: bem antes pelo contrário. O PS é um partido marcadamente neoliberal, profundamente influenciado pela ideologia neoliberal e dominado por uma clique neoliberal há muitos anos, praticamente aliás desde o seu início. O facto de no seu seio existirem talvez alguns resquícios de genuínos sociais-democratas não faz dele um partido social-democrata, tal como uma andorinha não faz a primavera.

Pior do que o neoliberalismo, neste partido falso e enganador, é o seu papel travestido de “social-democrata”, com o único intuito de mais facilmente “vender” e fazer passar a ideologia neoliberal entre o povo trabalhador.

São contumazmente hipócritas, falsos e vigaristas. Pior, são uma escola de vigarice e corrupção.

São, no conjunto dos neoliberais em Portugal – e tantos outros países do mundo – os maiores inimigos do povo e da Nova Social-Democracia e os maiores amigos do nefando neoliberalismo.

O BE, por seu turno, é um partido que defende o socialismo, embora de facto a prática e a realidade o tenha feito resvalar para o campo da social-democracia, mas de forma atabalhoada e caótica, sem que sequer seja capaz de reconhecer este facto e de exorcizar o socialismo.

Não há, portanto, em Portugal partidos sociais-democratas, o que coloca este novo movimento isolado no espetro político português. Do PSD, nem vale a pena falar, apesar de poder, instantaneamente, ter direções ou líderes de pendor mais ou menos social-democrata, como sucedeu com Sá Carneiro.

Mas é importante explicar a posição pró-capitalista e antissocialista da Nova Social-Democracia, a qual nada tem de preconceito, nem de “parti pris”, mas antes está solidamente fundada teoricamente.

O socialismo, na teoria e sobretudo na prática, não toma em conta a natureza animal humana, e consequentemente o papel do egocentrismo na evolução da espécie. Altruísmo e egoísmo são duas faces da mesma moeda na formação dessa natureza. Cooperação e interesse próprio. É evidente que se pode combater esta natureza dicotómica, mas unitária,  e tentar subvertê-la, anulando o lado egoísta da equação, ou pelo menos reduzindo-o à inexpressividade, tal como aliás se tem que controlar esse lado em qualquer sociedade, como sempre se fez. É a luta entre o Bem e o Mal. Mas isso traz mais prejuízos do que benefícios, sobretudo em doses radicais, como faz o socialismo.

É na economia que o interesse próprio – o egoísmo – se expressa na sua plenitude. Anulá-lo, ou reduzi-lo à inexpressividade, é impedir que todo o imensíssimo manancial de energia que deriva da expressão desse interesse próprio humano, que se revela, na economia, num empreendedorismo fanático e imparável, em busca do interesse próprio e de melhores condições de vida, seja anulado ou drasticamente reduzido, o que resulta numa quase paralisação da economia e do desenvolvimento.

Tudo isto se verificou nas experiências socialistas da URSS, da RPC, Cuba, Coreia do Norte, Vietname e várias outras.

A URSS implodiu por si própria, às mãos duma completa letargia económica e a RPC transformou-se numa economia capitalista, embora dirigida centralmente por uma empresa monstruosa e totalitária a que chamam PCC, cujo conselho de administração é o seu comité central e que, para falar verdade, tem sido uma das causas – e das mais importantes – do explosivo sucesso do modelo chinês de capitalismo “comunista”.

Todos nós sabemos, por experiência comum de vida, que as pessoas aplicam muito mais energia na defesa e prossecução daquilo que é seu, do que daquilo que é de todos ou dos outros.

E, resumidamente, é disto que se trata.

A questão central não é proibir o capitalismo, é domesticá-lo e impedir que a manifestação do interesse próprio, deixada à rédea solta e à vara larga, se transforme naquilo a que assistimos: um estado caótico da economia, um capitalismo de casino, gerador de uma enormíssima concentração do capital nas mãos de cada vez menos gente e prejudicando, consequentemente cada vez mais à imensíssima maioria das populações: é isto a que se chama neoliberalismo.

O qual, verdadeiramente, não é capitalismo, mas uma malformação degenerativa do capitalismo, altamente concentracionária, que o subverte e lhe muda a natureza, passando-o para um tipo de sociedade totalitária e fascizante, submetida ao exclusivo poder do dinheiro e do capital, dominando e corroendo as democracias, através do fácil controlo dos governos e dos partidos, da corrupção dum sistema que, por ser partidocrático, propicia e facilita esse domínio. O neoliberalismo é mais comunismo do que capitalismo. O espírito do capitalismo, da liberdade económica e de empresa e da prossecução concorrencial, não existe no neoliberalismo. Está pura e simplesmente morto pela concentração de capital.

A questão, portanto, reside na domesticação do capitalismo, tal como se domestica a manifestação do interesse próprio em tantos outros domínios da vida em sociedade, sem que isso signifique que se anule essa mesma manifestação.

A questão é aproveitar o que esse imenso manancial de energia humana tem a dar à sociedade, essas megatoneladas de energia, superior à de várias bombas atómicas, que as pessoas produzem diariamente pelo mundo fora em prol de si próprias e dos seus, transformando-a numa economia capitalista utilitária e subordinada à democracia, à vontade do povo e ao interesse geral.

A questão, portanto, a megaquestão, é saber como isto se faz. A questão do milhão de euros.

E é aqui que a Nova Social-Democracia também tem uma resposta e uma proposta, com vista à domesticação do capitalismo, submetendo-o à política, à vontade do povo e aos princípios do interesse coletivo e duma economia utilitarista.

A NOVA SOCIAL-DEMOCRACIA NÃO É SOCIALISTA.

A NOVA SOCIAL-DEMOCRACIA DEFENDE UM CAPITALISMO DE TIPO NOVO, PROGRESSIVO E HUMANISTA, SUBMETIDO À VONTADE DO POVO, AO INTERESSE COLETIVO E À PROSSECUÇÃO DUMA ECONOMIA UTILITARISTA.

O primeiro fator de controlo da sociedade democrática de economia capitalista sobre a tendência permanente do capitalismo para a concentração e para a subversão da ordem democrática em seu favor, é a própria democracia de tipo novo. Ou seja, o modelo novo proposto de democracia integral, direta e participativa e a quase total transparência que implica, constitui em si o primeiro e mais forte instrumento de controlo democrático do capitalismo. Será muito difícil, numa sociedade amplamente vigiada ao segundo pelo seu soberano – o povo – a todos os níveis, onde os representantes políticos que subsistam – cada vez menos – estão permanentemente ameaçados de “impeachment”, onde aos partidos é atribuído um papel meramente residual e onde é obrigatória a exposição pública de todos os contratos que envolvam poder e dinheiro do estado, conseguir influenciar os políticos e titulares de órgãos de soberania.

A relegação dos partidos políticos e das suas cliques, reinantes e dominantes na democracia partidocrática, desaparecerão, por simplesmente perderão legalmente o monopólio sobre o sistema eleitoral e, consequentemente, sobre o sistema político. O regime de democracia partidocrática, ainda vigente e dominante, é o principal vício corruptor do sistema político e económico.

Por outro lado, as regras jurídicas da nova sociedade social-democrata, impedirão o crescimento das unidades económicas empresariais e dos indivíduos acima dum nível pré-estabelecido (bem como impedirão a descida abaixo dum outro nível), forçando a divisão empresarial através de regras antitrust e antimonopólio, aprofundando e privilegiando a concorrência saudável entre os players do mercado. Isto, que é um pilar da Nova Social-Democracia, dificultará largamente o domínio do capitalismo e dos capitalistas sobre a democracia, através do tráfico de influências e da corrupção dos agentes políticos, hoje tão usual, não só por enfraquecer simultaneamente os agentes económicos e os agentes políticos, como por aumentar a concorrência e a vigilância popular, proibindo a partidocracia.

Acresce que as leis penais serão agravadas e a investigação criminal será reforçada, permitindo não só um mais efetivo controlo, como uma forte ameaça de penalização e, sobretudo, de confisco de bens, vertente que deverá ser privilegiada no combate à corrupção e tráfico de influências.

Mas o controlo popular sobre as tentativas de domínio e influência da política pela economia, não se bastará com estas medidas. Trata-se duma área essencial da Nova Social-Democracia pelo que lhe será prestada um atenção central, através não só das medidas enunciadas, como também dum programa educacional geral de alerta para aquilo que será classificado como um dos mais graves crimes sociais, contra a democracia e o novo estado de direito democrático: tentar influenciar através do dinheiro os processos políticos e corromper os agentes políticos.

Uma miríade de soluções e antídotos serão aplicados, fazendo deste objetivo um processo de estado.

Entre elas – referida por assumir um papel central no espírito da Nova Social-Democracia – figura a popularização do capitalismo, que nada tem a ver com o hipócrita “capitalismo popular” de Tatcher, entre nós ridiculamente apregoado pelos neoliberais Cavaco e Guterres.

A popularização do capitalismo é um programo holístico de apoio à criação empresarial (e não à aquisição de ações de empresas protomonopolistas) por parte dos cidadãos, sobretudo os de menores rendimentos, permitindo-lhes acesso direto ao tabuleiro do jogo e ao capital, através dum amplo plano nacional de popularização empresarial, ou seja, da participação direta no protagonismo empresarial.

Apenas a título de exemplo refere-se o caso do setor das pescas.

Num país com mais de mil Km de costa, tradicionalmente ligado ao mar e com uma das maiores ZEE do mundo, é absolutamente incompreensível o estado de letargia a que deixou conduzir o seu setor de pescas, que ainda há poucas décadas representava um dos pilares da economia nacional.

Este crime económico, cometido pelos governos da democracia, deitou a perder o know-how acumulado ao longo de séculos.

Um governo da Nova Social-Democracia nunca o teria permitido. E uma das primeiras medidas que tomaria, seria implementar um programa de recuperação dos valores perdidos, financiando a aquisição de barcos e frotas de pesca, por parte dos pescadores e armadores que ainda sobram e resistem e daqueles que o quisessem, de entre os que ainda estão vivos e conhecem a arte.

Os barcos deveriam ser propriedade dum instituto público que os concessionaria a esses homens (e mulheres, se as houver), para que os explorasse, formando companhias entre si e pagando uma retribuição ao estado que permitisse, a longo prazo, o pagamento das embarcações.

Quando eventualmente se mostrassem incapazes da exploração das embarcações, ser-lhes-iam retiradas para entregar a outros, bem como se permitiria aos melhores que acumulassem embarcações e constituíssem frotas neste regime.

As embarcações passariam para a plena propriedade dos concessionários ao fim de algum tempo, sem que o estado ganhasse com isso, antes pelo contrário, admitindo-se até que perdesse, uma vez que ganharia definitivamente o país, quer na recuperação do setor, quer no desenvolvimento económico, quer na criação de emprego, quer no relançamento da economia do mar, que arriscamos perder definitivamente, se continuarmos no caminho que temos vindo a seguir, o que constitui uma verdadeira vergonha nacional.

Este tipo de medidas, de que o setor das pescas é exemplo e emblema, serão sistematicamente aplicadas por um estado social-democrata e por um governo da Nova Social-Democracia, a todos os setores da economia nacional, mormente aqueles que mais necessitem de impulso e apoio governamental e estatal.

Uma política planificada com vista à promoção do empreendedorismo é um dos pilares da Nova Social-Democracia, visando a disseminação de pequenos e médios empresários e de associativismo empresarial, quer nas áreas tradicionais, quer nas mais inovadoras, o que implicará um programa escolar de empreendedorismo, desde o início da escolaridade média até à universitária. Só assim se desenvolverá uma mentalidade de empresa e de capitalismo concorrencial, democrático e popular.

A liberdade é a alma do capitalismo, que morre às mãos do neoliberalismo concentracionário.

SIM, É POSSÍVEL SUBMETER O CAPITALISMO À DEMOCRACIA!

SIM, É POSSÍVEL SUBMETER O CAPITALISMO AOS PRINCÍPIOS DUMA ECONOMIA UTILITARISTA E  PROGRESSIVA!

A criação deste capitalismo de tipo novo não esgota o programa económico e social da Nova Social-Democracia.

Necessário se torna falar do Novo Estado Social e em que difere do estado social tradicional.

Os pilares fundamentais do estado social são, evidentemente, os pilares fundamentais das necessidades de vida humana em sociedade.

A saúde, a habitação, a educação, o acesso à justiça, a segurança, o sistema de pensões, são as bases tradicionais a que o Novo Estado Social junta o lazer (em várias vertentes, como o turismo e veraneio) o trabalho, o rendimento mínimo garantido,  a cultura e informação, o apoio e solidariedade social, a família e a procriação, os animais de companhia, o acesso aos serviços básicos (água, energia, internet, telecomunicações), transportes públicos, enfim tudo aquilo que, numa solução holística contribua ou possa contribuir para o objetivo que deverá ter consagração constitucional: a felicidade dos cidadãos. Este objetivo será inscrito numa constituição da Nova Social-Democracia. As sociedades humanas constituem-se para que os seus elementos vivam o melhor possível e sejam o mais possível felizes.

Esta dimensão dos direitos fundamentais do cidadão no Novo Estado Social, propugnada pela Nova Social-Democracia, é totalmente nova no marco das constituições e no marco do conceito de estado social. Não é um simples alargamento ou aprofundamento dos direitos fundamentais: é um novo conceito.

Saúde: a Nova Social-Democracia defende um SNS total, a todos os níveis. A cobertura total do território nacional, a abrangência total de todos os cidadãos residentes, nacionais ou não, a cobertura de todas as valências sanitárias, incluindo aquelas que ou são parentes pobres ou são excluídas, como a estomatologia, toda a assistência médica, medicamentosa, de enfermagem e paramédica, incluindo medicinas alternativas, desde que comprovadamente eficientes, assistência médica de emergência, ao domicílio sempre que recomendável, etc., sempre prestada segundo os melhores padrões mundiais que o estado da arte permita, em instalações condignas e eficazes, atempadamente e não com anos de espera, como sucede entre nós, tudo num programa holístico que tenha por objetivo servir qualquer cidadão residente carenciado de assistência. Só isto é um serviço nacional de saúde. São admissíveis e recomendáveis taxas moderadoras, desde que seja garantido um acesso fácil a todos os cidadãos, em função da sua classe de rendimentos. O SNS não tem que ser gratuito, tem apenas que ser facilmente acessível a todos que dele necessitem. Se há países que o têm, nós também o podemos ter.

Habitação: Apesar de já inscrito na CRP, este direito fundamental dos portugueses é uma piada. Tal como é uma piada ver a forma como os tribunais, em defesa do seu regime, dão voltas ao texto, com o objetivo de o descontextualizar e assim conseguir justificar o injustificável.

Nova Social-Democracia não tolera um único sem abrigo, nem um único cidadão sem uma habitação condigna, em bairros organizados e habitáveis.

Educação: Esta é uma das bases fundamentais da nova sociedade social-democrata. Todos os cidadãos têm que ter acesso a uma educação completa e apenas com taxas moderadoras em função da classe de rendimentos, mas sempre acessível, podendo ser gratuita para quem assim necessite.

A Nova Social-Democracia defende um ensino público de qualidade exemplar, geral, universal laico e gratuito, mas sobretudo um ensino – seja ele público ou privado – em que, sem que o estado intervenha nas questões de formação religiosa ou moral dos alunos, que deverão sempre ficar a cargo das famílias, se tenha como objetivo fundamental a transmissão e consolidação dos valores democráticos e dos princípios republicanos, bem como a formação de cidadãos cívicos e da consciência crítica de cada um, formando adultos capazes de compreender o mundo e a cidadania, de o interpretarem plenamente e capazes de decidirem por si.

O ensino não deve ser apenas instrução técnica e curricular (embora também o deva ser): deve ser formativo de cidadãos plenos.

Mas o aspeto fundamental da educação na nova sociedade social-democrata não é isto. É que ela deve ser marcadamente virada não só para a instrução, mas também e sobretudo para a consciência política e consciência crítica, enquadrada nos valores da cidadania, da soberania popular, da democracia integral, da liberdade, da tolerância, do combate à corrupção, da defesa dos valores sociais, da integridade de caráter, de seriedade, de entreajuda, solidariedade, combate ao crime, etc. E isto é novo. Só as sociedades totalitárias se preocupam com aspetos similares, mas sempre no sentido errado. Uma sociedade democrática deve ensinar não só os valores da democracia, como criar consciências críticas, cidadãos que saibam pensar criticamente, que recebam valores sociais e cívicos. Essa será a melhor arma de defesa da democracia e da soberania popular e a melhor forma de combater as derivas totalitárias, como o neoliberalismo.

Uma grande parte dos recursos financeiros deve ser investida no programa educacional na Nova Social-Democracia, de forma aberta a todas as inovações que se revelem eficientes e adequadas.

O ensino privado não só será evidentemente permitido, como será acarinhado, não podendo contudo fugir aos princípios fundamentais enunciados, designadamente a fiscalização pública.

O Estado dedicará uma parte importante dos seus recursos ao ensino e à educação e a assegurar a ordem e a disciplina dentro dos recintos escolares, nunca permitindo a caótica situação atual nas escolas públicas, que se destina, no fundo, a permitir o desenvolvimento do ensino privado. Descura-se o ensino público, para proteger o ensino privado, tal como se descura o SNS para proteger a saúde privada. Isso nunca acontecerá na Nova Social-Democracia.

Sistema de reformas e pensões: O sistema de pensões da Nova Social-Democracia introduzirá alterações fundamentais ao sistema atual. A primeira será o plafonamento à volta de 3 salários mínimos, valor acima do qual ninguém poderá receber.

A segunda será a pensão mínima que nunca poderá estar abaixo de um salário mínimo.

A terceira será a possibilidade de optar por um sistema privado, ainda que parcialmente, de modo a complementar a pensão de reforma e velhice.

Este sistema é muito mais justo e equitativo do que o atual e o único compatível com uma sociedade social-democrata.

O sistema português atual está profundamente inquinado pelas influências neoliberais e contempla assimetrias inaceitáveis.

Salário mínimo: A existência duma política de salário mínimo é um instrumento vital da social-democracia. O seu equilíbrio e proporcionalidade deve estar submetido aos princípios do estado social, proporcionando a quem trabalha a garantia de que receberá o suficiente para se sustentar e contribuir para o sustento da sua família, garantindo ainda o acesso ao lazer e ao descanso. Trabalhar não pode, nunca, numa sociedade social-democrata, significar apenas ganhar o suficiente para se manter vivo e continuar a trabalhar. Tem que significar poder viver dignamente, sustentar os filhos e ter acesso ao lazer. Por isso, no Portugal de hoje (2019), o salário mínimo não poderá ser inferior a 1000€ e isto no pressuposto social-democrata de que o trabalhador terá acesso a habitação social a preços compatíveis com o salário do seu agregado familiar, bem como acesso tendencialmente gratuito à saúde e educação.

Acesso à justiça: Este é um dos direitos fundamentais do cidadão mais preteridos e vilipendiados pelo neoliberalismo vigente em Portugal. O acesso aos tribunais, sobretudo na jurisdição cível e comercial, é praticamente negado à imensa maioria da população portuguesa que não consegue assim fazer valer os seus direitos, em todas as jurisdições, quer pela intensa desconfiança existente no sistema, quer por simplesmente lhe ser impedida a possibilidade de acesso, por via da restrição do apoio e por via da prática burocrática, extremamente restritiva e desencorajadora, aliás como em toda a administração pública portuguesa.

Foi a forma neoliberal encontrada de cercear o acesso aos tribunais e assim resolver o problema da procura de justiça, perante a ineficiência da oferta. O sistema de acesso aos tribunais tem que ser efetivo e total, de forma a assegurar aquilo que é negado na prática: a tutela jurisdicional efetiva, e só isso é compatível com uma sociedade social-democrata. Poderá haver taxas moderadoras, mas apenas para quem as possa pagar e estas deverão também ser por classes de rendimentos. A todos os que não possam pagar, o acesso deve ser gratuito. Compete ao estado saber dar resposta à procura. Esta não deve ser cerceada à custa dos pobres.

Outros: Por outro lado, como referido, deverão ser inscritos na constituição toda uma panóplia de direitos sociais fundamentais ainda dela não constantes e os já existentes deverão ser efetivamente implementados, o que nunca aconteceu, salvo pequenas tentativas tímida e insuficientes, por vezes até ridículas.

Entre eles, e com particular ênfase, figura um rendimento mínimo garantido, misto da formulação da RBU e do nosso rendimento mínimo, assegurando a todos um rendimento mínimo à volta dos 500€, que receberão mesmo estando empregados, desde que não superem, no total, a fasquia dos 4 salários mínimos.

Todos os direitos fundamentais, sociais ou não, deverão obedecer ao desígnio de deverem concorrer para o objetivo constitucional nuclear da prossecução da felicidade dos cidadãos, o que não consta da constituição. Por outro lado, outros direitos deverão constar, como o direito ao lazer na sua formas fundamentais, como o direito ao turismo e ao veraneio, aos transportes públicos, gratuitos ou com taxas moderadoras por classes de rendimentos, à informação pela existência de fornecimento gratuito de internet, ou com taxas moderadoras, à cultura, ao apoio à detenção de animais de companhia, da alimentação à veterinária, etc.

O objetivo, como se sabe, é redistribuir a riqueza gerada numa sociedade capitalista controlada, progressiva e utilitária, subordinada aos princípios da satisfação das necessidades humanas e da felicidade dos cidadãos. Aqueles que ganham nesse jogo, devem abdicar de parte do que ganham em prol dos que perdem. O facto de lhes ser permitido usufruírem das vantagens que lhe são dadas pela organização capitalista da sociedade e pelo papel central conferido ao dinheiro, implica que retribuam essa mesma sociedade com uma parte dos seus lucros. Seguramente que preferirão isso ao socialismo.

Numa sociedade da Nova Social-Democracia, redistribuir implica um conceito lato e estruturado, holístico, global, subordinado aos enunciados princípios dum capitalismo progressivo: satisfação das necessidades humanas de todos os seus membros e obtenção da maior felicidade coletiva possível.

Isto é exatamente o contrário da forma extremista e terrorista do “capitalismo” neoliberal, que privilegia a competição em detrimento da cooperação, segundo a máxima de cada um por si e ninguém por todos., que tem conduzido às iníquas e extremas desigualdades que todos conhecemos e que tanto mal e tanta dor têm provocado.

O NOVO ESTADO SOCIAL PREVÊ UM PROFUNDO ALARGAMENTO DOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS E A SUA INSCRIÇÃO NA CONSTITUIÇÃO, SUBORDINADOS AOS PRINCÍPIOS DA SATISFAÇÃO DAS NECESSIDADES BÁSICAS HUMANAS E DA FELICIDADE DOS POVOS, NO QUADRO DUM CAPITALISMO CONTROLADO, PROGRESSIVO E UTILITÁRIO.

Muitos dirão que todo o ideário da Nova Social-Democracia é muito bonito, mas que é preciso dinheiro para o sustentar.

Organizar uma sociedade com base em duas redes efetivas, uma inferior, que impede que os cidadãos, sejam quais forem as circunstâncias, caiam abaixo dum nível mínimo de vida digna, e outra superior, que impede a subida acima dum outro nível, ambas com alguma elasticidade, implica efetivamente muitos recursos financeiros.

Só que eles existem. Até num país como Portugal, que, sem ser pobre, também não é dos mais ricos.

A única coisa que é preciso é ir buscá-los, aplicá-los criteriosamente e organizadamente. E apoiar a economia para que os gere.

A questão está baseada no sistema fiscal, que deverá obedecer a três princípios fundamentais: progressividade, eficiência e reforma do estado.

O primeiro é um princípio fundador e pilar fundamental de qualquer sociedade social-democrata: os impostos progressivos, que deverão atingir os 70% de taxa máxima, para os rendimentos anuais em sede de IRS acima de um milhão de euros, descendo progressivamente até 0%, em rendimentos inferiores a dez mil euros. Nos rendimentos de sociedades comerciais a taxa máxima deverá situar-se nos 30 a 40 % para os rendimentos superiores a um milhão de euros, descendo até 0% nos rendimentos inferiores a dez mil euros.

O sistema fiscal deverá também, nos impostos indiretos, agravar a tributação de bens de consumo supérfluos e luxuosos, desagravando até ao limite do possível os impostos que sacrificam os mais necessitados e incidindo, tanto quanto possível, progressivamente sobre transações de capital elevado e desagravando sobre as de baixo capital.

Deverá ainda haver impostos especiais sobre as transações de bolsa e de especulação capitalista, como a “Taxa Tobin” ou sobre as grandes fortunas.

Por outro lado, o sistema fiscal deverá ser altamente simplificado, de modo a dispensar uma parte da máquina fiscal e a tornar mais eficiente a cobrança, diminuindo drasticamente a complexíssima teia burocrática criada, como no caso da maioria dos benefícios fiscais.

Estas medidas, acompanhadas de outras, podem transformar o sistema fiscal e cobrar receitas muito superiores, cujo total seria suficiente para financiar as medidas social-democratas defendidas.

É evidente que o crescimento da receita depende em grande parte do crescimento da economia e esse será inequívoco numa economia como a propugnada, desde logo pelo sentimento de justiça introduzido no sistema, pela quebra nas desigualdades sociais e pela sensação de retorno conferida ao conjunto pela melhoria no sistema social. Há muito menos evasão quando as pessoas sabem que o seu dinheiro não serve para corrupção e para mordomias de políticos, mas para investir em medidas sociais.

Por outro lado, a Nova Social-Democracia defende ainda uma profunda reforma do estado, que tem sido tão falada, mas nunca executada, de modo a torná-lo mais eficiente, mais barato e mais leve. Um dos principais problemas de Portugal é a organização. Fazer mais com menos. Sendo embora um domínio de dificílima execução, numa cultura como a portuguesa, é contudo possível combater os lobbies instalados e gastar muitíssimo menos, fazendo muitíssimo mais. Mais uma vez, aqui também, uma tarefa destas requer um plano nacional de combate aos gastos desnecessários nas administrações e de mudança de hábitos culturais dos trabalhadores. Mas é possível. ´Trata-se apenas de organizar e racionalizar, como muitos outros já fazem, diminuindo os gastos e simultaneamente fazendo mais.

A NOVA SOCIAL-DEMOCRACIA DEFENDE UM SISTEMA FISCAL PROGRESSIVO, MAIS SIMPLES E MAIS EFICIENTE, COM TAXAS A ATINGIREM 70% NOS RENDIMENTOS MAIS ALTOS.  ESTAS MEDIDAS PERMITIRÃO FINANCIAR AS MEDIDAS SOCIAIS PROPOSTAS, CONJUNTAMENTE COM UMA MAIOR ORGANIZAÇÃO DO ESTADO E UMA SUA PROFUNDA REFORMA.

V – O plano estratégico nacional global

Uma sociedade da Nova Social-Democracia deve garantir a sua preservação, pugnando para que a estrutura social-democrata do estado se mantenha, ou seja, que se perpetue a democracia e o estado social e, consequentemente, uma sociedade destinada a promover a felicidade dos seus membros.

A constituição dos respetivos países será o instrumento jurídico fundamental de defesa e perpetuação da social-democracia.

Contudo, mesmo uma boa constituição, amplamente apoiada, não é o suficiente para esse fim.

A mais sólida e melhor forma de defender um modelo político, económico e social duma sociedade é obter o apoio da maioria dos membros da respetiva comunidade nacional.

E para isso não basta uma constituição.

Por outro lado, uma comunidade política nacional é, por definição, uma comunidade de cultura diferente das outras, ocupando e gerindo um território diferente, com um passado próprio, muitas vezes uma língua própria, etc. Isto faz com que as suas idiossincrasias ditem uma intenção estratégica e de futuro própria.

A constituição é apenas – e não é pouco – um conjunto de regras organizativas fundamentais, que fixam, com alguma estabilidade temporal, as grandes linhas e fundamentos da organização do estado, não se debruçando sobre os anseios coletivos, nem sobre aspetos mais pormenorizados da vida política, económica e social.

É aqui que entram os planos estratégicos globais.

Os planos estratégicos globais serão um instrumento de desenvolvimento e controlo da globalidade da vida da nação, imediatamente abaixo da constituição e dela subsidiários, destinados à implementação e execução destes princípios, mas muito mais detalhados e elaborados, acima dos instrumentos jurídicos ordinários.

Situados hierarquicamente entre a constituição e a lei ordinária, deverão abranger toda a vida social, estabelecendo metas de curto, médio e longo prazo, só podendo ser aprovados em referendo popular e só podendo ser alterados pela mesmo via.

O controlo da execução dos planos deverá pertencer ao parlamento e a sua execução ao governo, sempre acompanhados da vigilância popular, exercida através do instituto do referendo, que deverá ser convocado por qualquer órgão de soberania em caso de necessidade, ou por um grupo de cidadãos com capacidade para exigir referendo.

Uma economia capitalista democrática, popular e utilitária, progressiva e destinada à prossecução da felicidade dos cidadãos, anti neoliberal e excludente da selvajaria concentracionária caraterística do capitalismo de casino, como é a economia da Nova Social-Democracia, não pode, a nenhum título, prescindir da planificação e até de algum grau de centralização, o que só os planos podem permitir.

Mas, como vimos, este instrumento novo, nada tem a ver com os planos soviéticos de Estaline, nem com a atual centralização económica chinesa.

Eles são planos globais, holísticos, que planearão quer as grandes linhas económicas da respetiva comunidade política, quer as grandes linhas políticas e sociais.

O objetivo duma sociedade da Nova Social-Democracia não é satisfazer a cupidez dos grandes agentes capitalistas, mas sim a totalidade dos seus membros.

A planificação é um instrumento básico de qualquer organização e, por maioria de razão, dum estado. Quem nos quer fazer crer o contrário tem apenas como objetivo uma falsa liberdade de “mercado”, verdadeiramente inexistente para a ampla maioria dos cidadãos e que beneficia apenas os grandes agentes do capitalismo selvagem.

Os planos, como se disse, não só serão subsidiários da disciplina constitucional, como serão controlados, em primeira linha, pelos órgãos de soberania e, em última linha, pelo próprio povo através do referendo, o que afasta completamente qualquer receio de deriva antidemocrática.

A NOVA SOCIAL – DEMOCRACIA DEFENDE A EXISTÊNCIA DE PLANOS ESTRATÉGICOS GLOBAIS DESTINADOS À IMPLEMENTAÇÃO E EXECUÇÃO DAS GRANDES LINHAS CONSTITUCIONAIS E À CRIAÇÃO DE METAS PROSPETIVAS POPULARES E NACIONAIS.

PROCLAMAÇÃO FINAL

Um dia virá em que os povos viverão felizes e em paz.

Um dia virá em que seremos livres. Livres da pobreza e da miséria, livres de todos os totalitarismos e de todos os ditadores. Sejam eles quais forem.

Um dia virá!

Um dia virá em que cada um viverá como quiser viver, sem que possa impor aos outros a sua vontade.

Um dia virá em que cada um terá garantido um mínimo de dignidade.

Um dia virá em pai nenhum verá mais os seus filhos não terem escola, não terem médico, não terem roupa, não terem casa, não terem pão, não terem descanso, porque simplesmente esse pai, apesar de trabalhar, não lhes consegue dar uma vida digna desse nome.

Um dia virá em que teremos um SNS digno desse nome e não os matadouros em que se tornaram muitos dos hospitais públicos portugueses. Um dia em que a saúde será para todos e não apenas para os ricos.

Um dia virá!

Um dia virá em que todos terão escolas públicas dignas desse nome e não antros de indisciplina e irresponsabilidade, onde nada se pode aprender. Um dia em que a educação será para todos e não apenas para os ricos.

Um dia virá em que os mais pobres e protegidos terão casa em condições mínimas de dignidade e não barracas e ruínas.

Um dia virá em que nunca mais nos submeterão aos interesses cúpidos e desmedidos dum capital sem regras, concentrado nas mãos de poucos e faltando nas mãos de muitos.

Um dia virá em que o dinheiro e a economia estarão submetidos à regras da democracia, ditadas por todos, igualmente.

Um dia virá em que os corruptos serão presos.

Um dia virá em que os impostos serão para todos e proporcionais aos seus ganhos.

Um dia virá em que a política será de todos e os governos não serão escolhidos pelos partidos, mas por todo o povo.

Um dia virá em que teremos força, mais força do que eles.

Um dia virá em que não seremos mais escravos de políticos ou de oligarcas.

Um dia virá, com

Liberdade e Nação

Paz e Pão

Saúde e Habitação

Educação e Trabalho

Justiça Social

Democracia Popular

Esse dia chegará.

Um dia virá em que o país será de todos. Em que seremos livres. Em que haverá justiça, a nossa justiça.

Um dia virá em que seremos todos cidadãos iguais.

Virá. Esse dia virá.

E seremos felizes e viveremos em paz.

Esse dia virá e não tardará.

Será o reino da Nova Social-Democracia!

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A NOITE QUE NÃO VIROU OU OS CROCODILOS QUE VOAM BAIXINHO OU AINDA O TRIUNFO DO EMPATE

E o prometido cumpriu-se. Trump perdeu as eleições, mas perdeu pouco, ou seja, perdeu como aquele crocodilo que voa baixinho.
É impressionante esta guerra mundial no interior da América. Todos os grandes interesses planetários ali se digladiam, em guerra surda, que se torna estrondosa nestes dias, sem contemplações nem punhos de renda. Vale tudo, menos tirar olhos.
E para nós, povo miúdo de miúdos países, que contamos as nossas vidas por dias felizes e não por paletes de dólares, que interesse tem este frenesim apoplético em que se esganiçam os maiores poderes do globo?
Tem tudo a ver connosco.
Assentemos então no que nos diz respeito.
Em primeiro lugar, o mais importante objetivo estratégico dos povos do mundo, neste tempo em que vivemos, como em todos os que o precederam e provavelmente todos os que se seguirão, é a construção de sociedades livres e democráticas, pacíficas, justas e equilibradas, que lhes permitam viver tranquilos e soberanos, em paz e na harmonia possível, libertos do jugo e da interferência de outros. Numa palavra, aquilo a que hoje chamamos social-democracias livres.
Isto não é difícil de compreender e apreender: toda a história da humanidade está marcada por esta constante busca de felicidade e harmonia, de liberdade e independência, de paz e ordem, desde os tempos das sociedades primitivas, que lhe permita vencer, na medida do possível, os terríveis obstáculos naturais da existência e da vida.
Este desiderato é permanentemente contrariado pela natureza animal da espécie, da qual nunca se libertou e provavelmente nunca se libertará e que se traduz neste combate cósmico entre egoísmo e altruísmo, a que muitas vezes chamamos Bem e Mal e outros, mais poeticamente e mais abrangentemente, chamam de Yin e Yang, mas a que a ciência chama, mais apropriadamente, de instinto de sobrevivência e de reprodução genética, fatores determinantes na evolução, e que marcam a natureza humana, tal como a das outras espécies, para o bem e para o mal.
Em todos os tempos se manifestou esta tendência de dominação duns por outros, de agressividade e egoísmo, e hoje, nesta Era da Globalização, o Mal tem sido representado, desde o fim da II Guerra, pelo expansionismo americano, que conduziu à criação dum império – malévolo, como todos, terrorista, como todos, saqueador e ladrão, como todos – que se tornou no maior obstáculo à liberdade dos povos, à democracia, em suma à felicidade dos outros, a quem inclusivamente pilham as riquezas, em proveito próprio.
É assim que, em segundo lugar, o principal objetivo tático é acabar com o domínio americano sobre as vidas de todos nós, removendo este obstáculo ao desenvolvimento das nações do mundo.
Depois de 89 esta tendência agravou-se, com o colapso da URSS, tendo os EUA encetado imediatamente uma tentativa concertada de finalização do processo de domínio global, que só vem a ser travada pela Rússia de Putin, a partir de 2000 e, mais recentemente, pela crescente capacidade económica chinesa e o seu poderio militar. No decurso deste processo desempenharam um papel particularmente agressivo o deep state americano, o casal Clinton, o seráfico Obama e o multimilionário judeu sem-pátria George Soros com a sua tentacular organização a que ele próprio apelida eufemisticamente de “filantrópica” e que terá no seu ativo kármico mais almas de mortos a assombrá-la do que Hitler e Átila juntos.
Ora, como está bem de ver, um objetivo não é possível sem o outro.
Sem a libertação do mundo do seu principal inimigo (os EUA e alguns dos seus mais extremistas apaniguados, como Israel e a Arábia Saudita, bem como os mais sofisticados aliados, os governos europeus vendidos), nunca será possível atingir o primeiro desiderato.
Recentemente – num processo político que deu os primeiros sinais na Itália de Berlusconi – uma onda de revolta antissistémica tem varrido o planeta, nuns locais mais do que noutros, mas ameaçando tornar-se pandémica.
Nem sempre – aliás, quase nunca – essas manifestações de rebelião têm sido dirigidas politicamente no melhor sentido, sendo antes caóticas, desorganizadas e até reacionárias, como se viu há dias no Brasil de Bolsonaro.
A mais importante vitória desta vaga contra o sistema foi, sem dúvida, a eleição de Trump, em 2016.
O establishment internacional sofreu aí a mais profunda derrota que lhe podia ser infligida, inopinada e inesperadamente, tendo sido vítima de tal abalo que nunca mais se recompôs.
Os principais aliados do Império – os governos submissos europeus, das elites financeiras que se habituaram a viver acobertadas, cobardemente, sob as saias imperiais – não perceberam nada do que se tratava e, tementes e trementes, apostaram tudo em meter a cabeça debaixo da areia, à espera que passasse a tormenta e que o sistema e a sua máquina americana – o deep state – fizesse a Trump o mesmo que fizera a Obama, corrompendo-o, venalizando-o e metendo-o no bolso. Afinal, pensam, todos os homens têm um preço. Mas, até hoje, isso não aconteceu. E assim a aposta centrou-se nas eleições intercalares no próprio terreno do Império.
Deram tudo por tudo, todo o arsenal foi utilizado e Obama, o peso pesado da artilharia pesada, no final da campanha metia dó: rouco, afónico, emagrecido, embranquecido. Dera tudo por tudo, honra lhe seja feita. Afinal, era a vida dele e a dos seus – e a sua honra – que estavam em jogo. Soros investiu dezenas de milhões (qualquer dia o dinheiro esgota-se) e até a depressiva Hillary se desdobrou em iniciativas e insultos. Os governos e as elites europeias, ou o que resta deles, no seu jeito cobarde, espreitavam atrás das árvores e atiravam pedras quando lhes parecia que ninguém olhava. Afinal, já não acreditam em nada, a não ser na jurisprudência das cautelas.
E a noite surgiu, como todas, inexoravelmente, e desta vez não virou e fez jus às sondagens.
E o resultado foi um triunfante empate, seja Deus louvado.
Na perspetiva dos enunciados princípios, nada podia ter sido melhor, no marco das circunstâncias dadas.
Trump, verdade se diga, não é só um reacionário e um outsider: é também um homem mal formado, ignorante, duma esperteza saloia tão comum nos empresários “de sucesso” e obviamente a quem não pode ser concedido o benefício da confiança.
Mas também é verdade que é um teimoso antissistémico e que tem cumprido com esse papel, resistindo aos cantos das sereias e, talvez fruto da sua colossal fortuna, não cede aos apelos do dinheiro.
Bom, verdadeiramente bom, teria sido que o social-democrata Bernie Sanders tivesse ganho as primárias do PD e batido Trump nas eleições. Essa sim, seria uma revolução antissistema com pés e cabeça, com direção política e que teria mudado o mundo, mudando o Império por dentro.
Mas não foi isso que sucedeu. E quem não tem cão, caça com gato.
Se Trump tivesse sido derrotado em toda a linha nestas intercalares, o establishment internacional encher-se-ia de esperança e já ninguém os aguentaria de novo na tentativa de reposição da NWO. Ou seja, a maior parte do resultado até aqui obtido na sua destruição iria por água abaixo, os fluxos financeiros de apoio restabelecer-se-iam e os governos europeus submissos e as elites financeiras de suporte reganhariam um novo e perigoso élan. A miragem da destruição da Rússia e da China ganharia um novo brilho que, de novo, ofuscaria o almejado sonho da humanidade de construção de sociedades justas, livres, soberanas, equitativas, social-democráticas.
Por outro lado, se a vitória de Trump fosse total, vencendo todo o Congresso, com a Câmara dos Representantes incluída, e não simplesmente inviabilizando o impeachment (como sucedeu), teríamos um sério problema com a natureza megalómana e desequilibrada de Trump, que o deixaria um pouco à maneira de Nero, com vontade de incendiar Roma.
O ideal seria portanto um empate, e foi isso que sucedeu, mantendo enfraquecidos ambos os campos e a nós, pobres povos e cidadãos do mundo, mais esperançosos que assim continuem as coisas, exaurindo as forças de ambos os adversários nesta luta sem tréguas entre eles que, queira-o Deus, os conduza a todos a vitórias de Pirro, em que sobrem só os mensageiros para contar a estória.
Trump libertou-se do impeachment e perfila-se já para 2020, abrindo uma fortíssima hipótese a Sanders, cuja ala do PD saiu amplissimamente reforçada, com magníficas vitórias em todas as frentes, desde os senadores aos representantes, passando pelos governadores estaduais. Viu transformados em estrelas a muitos dos seus mais diletos discípulos, como a latina Ocasio, viu eleitas inúmeras mulheres, na maior representação da história americana, incluindo, também pela primeira vez, uma lusodescendente, duas indígenas, duas muçulmanas e muitos latinos, negros e imigrantes, robustecendo o fragor da sua fração dentro do corrupto e anquilosado partido, à maneira de Corbyn. Se, como este, tomar o partido por dentro e vencer as primárias, talvez o mundo e a América mudem. Se assim não acontecer, ficam pelo menos enfraquecidos o establishment e a idioteira trumpiana.
É este o triunfo do empate.
Entretanto em cada dia que passa, cada semana, cada mês, cada ano, reforçam-se a capacidade militar russa e a economia chinesa.
Os americanos também o sabem e melhor do que nós. E, nunca nos esqueçamos, há um só vetor que une todos – ou quase todos – os americanos: a política belicista e intervencionista, o sentimento messiânico de que a América tem o direito de mandar no mundo.
Trump foi indiscutivelmente um balde de água fria nos planos clintonianos, obamistas e sorianos do deep state. Mas ele próprio é americano e além disso tem sempre em linha de conta a satisfação dos desejos do seu eleitorado.
Só uma coisa fará seguramente parar a América na sua sanha contra a Rússia: o medo.
Esta receita é infalível. Foi o medo que evitou o conflito direto entre os EUA e a URSS, durante a Guerra Fria. Será o medo que evitará agora o ataque americano à Rússia. A determinação de Putin é conhecida de todos os responsáveis americanos e dos seus aliados: ele preferirá que a Rússia desapareça a que seja vencida. Que lhe interessa a ele um mundo sem Rússia? A frase é dele e é verdadeira.
Os tempos mais perigosos serão os mais próximos. Se a América não conseguir lançar o ataque nos próximos anos, nunca mais o lançará nas próximas décadas. O reforço bélico russo processa-se em progressão geométrica e à velocidade da luz.
É isto que os democratas, os defensores da paz e da liberdade dos povos, os amantes do direito das nações à sua autodeterminação, têm que ter presente no momento atual: combater o expansionismo imperialista americano para aprofundar as liberdades, as democracias, a independência dos povos e a justiça social. Em todo o lugar onde o possam fazer, designadamente nas redes sociais, pelos métodos que tenham ao seu dispor.
A nós, europeus, compete em particular uma das tarefas mais importantes da atualidade sob este ponto de vista: lutar para acabar com o que resta dos governos vendidos e tentar reerguer uma UE fortemente militarizada e independente de todos os blocos atuais, para ajudar a preservar a paz e recriar a democracia.
Um mundo multipolar, de grandes potências militares, com uma Europa forte e independente de EUA, Rússia e China, será um fator de paz no mundo e de equilíbrio e respeito mútuo.
Para desarmar, haverá tempo. Para armar é que escasseia.

Em Lagos, aos 9 dias do mês de novembro de 2018

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Subsídios para uma política penal democrática e popular

  • A tendência de criminalização e a contraordenação

 

Ubi homo, ibi jus

 

A política penal é um assunto demasiado sério para ser deixado nas mãos dos especialistas. Todos os fundamentos políticos duma sociedade devem ser decididos por aquele que é o seu destinatário, ou seja, o povo, soberano único e indivisível. Os especialistas – no caso académicos, magistrados, advogados – devem ser os meros executores e escribas técnicos dessa vontade popular.

A política penal é sem dúvida – ninguém duvidará – um dos pilares fundamentais da organização social. É na política penal que se plasmam com mais vigor e rigor os princípios morais dominantes na sociedade e assim informadores da sua organização, exatamente aqueles princípios aos quais o povo empresta a maior importância de fundação. O direito só pode ser aquilo que a sociedade quer, em cada momento, que ele seja.

Ao nível deste artigo não relevará a discussão filosófica e doutrinária sobre a pena, as suas funções, a sua evolução histórica, etc., mas tão-somente a relevância, no plano da teoria política hodierna – pós-moderna – da conceção de crime numa perspetiva da moral popular e das respetivas implicações na informação e na formação do direito positivo. O artigo só pretende uma abordagem política, o que não implica que sejam desprezados os conceitos derivados de toda a doutrina correlata e das ciências conexas, limítrofes ou não. Estarão sempre presentes, assumidos de forma postulada.

Por outro lado, e concomitantemente com este posicionamento, o artigo é necessariamente resumido e sumariado. Não é um artigo académico, antes pelo contrário, tem uma função proselítica e interventiva, com o intuito declarado de promover uma política penal democrática e popular.

Nos dias de hoje, as sociedades de estado de direito e de desenvolvimento económico relevante, têm vindo a manifestar uma forte tendência – todas elas – para a criminalização dos atos sociais. Os crimes vão sendo tipificados ao sabor dos tempos e dos ventos, por vezes passando a haver crimes que o não eram, para depois deixarem de sê-lo e mais tarde tornarem a sê-lo. No conjunto, os tipos criminais vão-se acumulando, entrando mais do que saem e deixando crescer uma montanha na qual já ninguém se entende.

Esta tendência promíscua tem que ver, na minha opinião, com a natureza dos poderes factuais das sociedades e o seu reflexo nos governos, ou seja, com a natureza das nossas democracias. Em termos simples, as democracias e os seus ciclos eleitorais tornam permeáveis os governos aos fluxos momentâneos das modas e propagandas. Por outro lado, a complexificação da vida moderna, também facilita esta tendência.

Mas não pretendo, aqui e agora, analisar estes aspetos, por mais importantes que sejam, e são.

O que interessa é que isto é um dado adquirido.

Aparecem tipos de crimes por tudo e por nada, alguns de tal maneira ridículos que são objeto da chacota generalizada dos cidadãos nas esferas que estes mais se manifestam: as ruas e as redes sociais.

O exemplo da criminalização do piropo é paradigmático do anedotismo, mas não demoraríamos muito a encontrar outros, como a injúria, os ataques (ou tentativa) por parte de cães por negligência do dono, o enaltecimento do terrorismo (não é terrorismo, nem atos preparatórios, nem tentativa), o lenocínio em muitas das suas formas, fazer grafitis, fechar uma varanda com uma “marquise”, etc. Enumerar não é possível.

Acumulando com isto, há a latitude de interpretação (como na injúria ou no lenocínio) conferida aos tribunais, e que conduz a situações como a condenação em prisão efetiva duma investigadora social que se sentiu injustiçada e ofendeu os juízes e o condutor duma carrinha que transportava prostitutas para o local de trabalho, também condenado em prisão efetiva. Ambos estão presos neste momento.

O desnorte é total e o resultado completamente desfasado do real sentimento popular sobre o assunto. Ninguém é capaz de perceber o que é crime e o que não é, ressalvadas as magnas questões. O povo não percebe a política penal, não concorda com ela e não se revê nela.

Entendo que só deve ser tipificado como crime o cometimento de ofensas muito graves aos fundamentos morais populares dominantes. Numa palavra, aquilo que se considera o Bem e o Mal, nas suas manifestações fundamentais.

O que nunca incluiria lançar um piropo, mandar uns “bitaites” a um juiz ou deixar um cão mal preso num quintal, por descuido.

Isto não significa que não devam ser punidas muitas das ações referidas, mas nunca penalmente.

A descriminalização que propugno – e que acho que é popularmente dominante – deverá ser acompanhada duma tendência de reforço do direito contraordenacional. Contraordenação, no lugar da penalização.

O direito contraordenacional é que deverá ser reforçado e alargado, quer com coimas, quer com inúmeras outras medidas punitivas, atualmente não previstas na lei, como p.e. o pedido público de desculpas, a perda temporária de bens (a definitiva já está prevista) ou a colocação temporária dos mesmos ao serviço da comunidade ou das vítimas da infração (quando as houver), a prática forçada de comportamentos (habilitar-se legalmente a conduzir) ou até medidas punitivas atípicas, adaptadas a cada caso e deixadas ao critério do juiz, dentro de determinadas balizas.

O direito contraordenacional deverá mesmo “invadir” as zonas menos graves de infrações que se possam subsumir em tipos de crime, que deveriam passar a ser considerados crime apenas nas suas manifestações mais graves e violentas, sendo contraordenações nas restantes, ao invés do modelo atual, que consiste simplesmente em baixar a moldura penal, mas mantendo a atuação como crime.

Este tipo de política criminal permitiria compatibilizar a justiça com a vontade popular, neste campo, e permitiria acabar com a total confusão agora reinante e que é muito perniciosa para a distinção do Bem e do Mal, tal como o entende a moral popular dominante.

É uma mudança de paradigma na lei penal, sem dúvida, mas necessária a uma política penal mais justa, mais democrática e mais popular.

Este modelo nada tem a ver com o sistema político em geral, a feitura das leis e a legitimação de quem as faz, que é matéria doutra safra, e sobre a qual me pronunciei já num outro artigo do blog.

Num próximo artigo escreverei sobre a duração das penas e as suas molduras, na mesma perspetiva deste, ou seja, uma visão democrática e popular da justiça e da política.

Em Tavira, março e abril de 2017.

A defesa da liberdade de expressão ou a (vã?) tentativa de impedir a nova censura

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Querer-se livre é também querer livres os outros.

Simone de Beauvoir

 

A turbulência dos tempos modernos e o advento duma nova era na consciência de si dos cidadãos de todo o mundo, provocada sobretudo pelo aprofundamento da comunicação trazida pela invenção da internet, estão a causar uma enorme incerteza e confusão em todos os domínios sociais, designadamente no entendimento do que é, ou do que deve ser, a liberdade de expressão. São sempre assim os tempos das grandes mudanças. Ainda recentemente, aquando do Brexit, se ouviram e leram vozes de pessoas credíveis e supostamente democratas, a clamar contra o facto de se ter dado a decisão ao povo (que afinal até era a favor da saída da U.E.). A confusão mental é grande.

É hoje comum abrir um jornal e depararmo-nos com uma notícia sobre a detenção de alguém que cometeu o “crime” de expressar uma ideia que contende com a ideologia dominante do momento, o que era já impensável há algumas décadas. As pessoas a que me refiro não praticaram atos criminosos, nem sequer praticaram atos preparatórios de atos criminosos. Limitaram-se, tão-somente, a manifestar por algum modo um pensamento de apoio ou concordância com possíveis atitudes criminosas.

Há muito que não se via disto nas sociedades democráticas mais avançadas, normalmente conotadas com o conceito de “Ocidente”.

Os exemplos que dou têm-se multiplicado em países da União Europeia, designadamente nas democracias mais avançadas, como França e Espanha, relativamente a “crimes” relacionados com o radicalismo islâmico. Repito, para que fique claro, que se trata de cidadãos que não lutaram ao serviço do Estado Islâmico, nem sequer recrutaram ninguém, nem construíram bombas, nem traficaram armas, etc. Refiro-me a casos de pura e simples manifestação de apoio àquela organização radical, por vezes nem sequer isso, apenas palavras proferidas ou escritas, em locais reservados ou em “sites” de apoio ao E.I. A detenção destes cidadãos é por vezes executada sem qualquer contextualização do sucedido, designadamente se se tratava p.e. dum adolescente em crise de identidade, sem qualquer esperança de futuro, etc.

Ou seja, a detenção dá-se porque os serviços policiais detetaram apenas a manifestação duma ideia no sentido indicado.

Para que as coisas continuem a ficar claras, deixo manifestado que considero o E.I. uma organização de extremo terror, como tem sido chamada, e que considero que tem que ser combatida por todas as vias, mormente a militar. Mas isto é o que eu penso e isso em nada tem a ver com o que outros pensam. Mas antes de entrarmos por aqui, vamos a outro plano da argumentação.

Passemos do extremo terror para a pedofilia. Já se consegue ver o mesmo tipo de atitude por parte de muitas pessoas, defendendo a criminalização de qualquer expressão de pensamento de tipo pedófilo ou de apoio à pedofilia, tendo mesmo havido já, em países de referência democrática, a detenção de pessoas que não praticaram qualquer ato pedófilo, nem sequer ato preparatório dum ato pedófilo, tendo-se limitado a frequentar “sites” do tipo, sem qualquer tipo de pagamento (o que efetivamente poderia já ser considerado um ato pedófilo em si).

De novo a título de registo de interesses, esclareço que considero a pedofilia um crime repugnante, ao nível (ou pior) dos crimes brutais das execuções do E.I.

Mas mais uma vez também não é disso que se trata.

Ouçamos agora apenas uns versos dum dos mais notáveis poetas portugueses:

“Mas… gosto mais de fedelhos.
Vou-lhes ao cu
dou-lhes conselhos,
enfim… gosto!”

Os versos são de António Botto, que dispensa apresentações e que escreveu também, p.e. (e apenas para que em poucos versos se avalie a sua indiscutível qualidade), em memória de Pessoa, de quem era amigo:

“Se eu pudesse fazer com que viesses

Todos os dias, como antigamente,

Falar-me nessa lúcida visão

– Estranha, sensualíssima, mordente;”

Como todos sabemos, a vida não é a preto e branco, nem sequer é simples. Hoje, Botto corria o risco de ser preso.

A liberdade de expressão tem que ser entendida como uma total liberdade de expressão de ideias, à qual não pode ser colocada qualquer limite; mas, se limites houvesse e eles pudessem ser colocados, seguramente que não seriam aqueles que começam a fazer caminho e que constituem um autêntico retrocesso civilizacional e um regresso a patamares já ultrapassados com tanta luta, tanto sofrimento e tanto sangue; basta que nos lembremos dos casos de Salmon Rushdie, do jornal dinamarquês “Jyllands-Posten” ou do “Charlie Hebdo”, todos eles aliás de duvidosa ou mesmo muito duvidosa qualidade, o que não impediu o ocidente de gastar milhões de euros e dar vidas em defesa da liberdade de expressão.  Esta senda conduz de imediato – já se ouvem esses ecos – primeiro à repressão de ideias fascistas e logo de seguida à de ideias comunistas.

A nossa civilização carateriza-se pela liberdade e desde logo pela primeira dessas liberdades, a de expressão do pensamento.

No dia em que permitimos que um cidadão seja detido por manifestar uma opinião a favor do E. I. ou a favor da pedofilia, estamos exatamente no mesmo nível do próprio E. I., com a diferença – por enquanto… – que estes executam os “infratores” de imediato e nós prendemo-los.

A regra de entendimento da liberdade de expressão tem que assumir a plena liberdade, diga-se o que se disser, defenda-se o que se defender, por maior que seja o disparate ou por maior que seja o mau gosto, por mais intolerável que pareça à maioria a ideia expressa por alguém. O que se reprime são os atos, não as ideias. Quem defende a pedofilia deve ser tolerado, quem pratica a pedofilia deve ser punido. Quem defende o E.I. deve ser tolerado, quem pratica atos terrorista (ou atos preparatórios relevantes), deve ser punido. Só isto, nada mais, nada menos, é liberdade de expressão.

O contra-argumento dos antilibertários a esta posição que defendo, limita-se a roçar a demagogia: se a liberdade é total, então a ofensa, a injúria e a calúnia terão que ser permitidas. Não é assim, pois o insulto não é uma ideia, tal como o não é o palavrão. Limitam-se a ser agressões verbais, ao mesmo nível da agressão física, e apenas com essa intenção, tal aliás como a lei já as define em todos os países civilizados. O que define a ideia, nada tem a ver com o insulto. São naturezas diferentes e que apenas coincidem no facto de usarem o mesmo veículo – as palavras ditas ou escritas – para se concretizarem. A ideia é a parte substantiva da equação, a palavra a parte adjetiva. A ideia adjetiva-se pela palavra, o insulto é pura e simples agressão e é essa agressão que constitui a parte substantiva da equação: a intenção de ofender.

Mas, se alguma vez aceitássemos que se tratava duma limitação, pois então seria apenas essa. E o problema não está em que os direitos tenham limites: o problema reside nos concretos limites que impomos. Que as liberdades e os direitos têm limites, todos o sabemos; desde logo o princípio kantiano da limitação pelo direito e pela liberdade do outro. E uma sociedade  que não permita a manifestação de ideias a favor do fascismo, é ela própria uma sociedade fascista. E uma sociedade que prenda quem defenda o E.I. é uma sociedade totalitária, tal como é aquela que prende quem defenda a pedofilia.

As ideias não infetam, e só contagiam quem quer deixar-se contagiar.

As sociedades que nós defendemos – e que tanto nos custaram a construir – vão ao ponto de permitir que alguém portador duma doença contagiosa possa andar em liberdade, potencialmente contagiando outros, privilegiando assim um direito individual, em detrimento dum direito coletivo: estas são as sociedades libertárias, este é o estado de direito.

Em Lisboa, no início do outono de 2016.

 

A União Ibero-Africana ou a continuação do cumprimento da vocação universalista de Portugal

 

 

Deus quis que a terra fosse uma,

Que o mar unisse, não separasse.

Fernando Pessoa

 

Já escrevi nestas páginas um artigo sobre a importância da criação duma confederação ibérica.

Hoje reverto ao assunto da importância da integração de Portugal em formações políticas de dimensão superior, que permitam a este povo exaurido e exangue ganhar força e massa crítica, em conjunto com outros povos seus irmãos, num movimento que considero a primeira das prioridades estratégicas do nosso país.

Como defendi então, a integração europeia é vital neste processo de fusão política que carateriza a sociedade do nosso tempo, mas é um salto excessivo para um pequeno país como o nosso, e que só pode ser encarado se conseguirmos uma unidade intermédia com outros povos, que a todos confira a dimensão necessária para que a sua presença não seja desprezada e – como tantas vezes – olhada e tratada com um paternalismo humilhante, quando não de pior modo.

Os países e as nações não podem viver sem estratégias e objetivos, sobretudo os mais pequenos;elas e eles têm que estar presentes, ainda que tacitamente, dum modo cultural, talvez até subconsciente, mas claramente assumido. E se uma nação grande e poderosa se pode dar ao luxo de se deixar simplesmente navegar, porque navega sempre na crista da onda, uma nação pequena e frágil tem que ter bem delineados esses seus objetivos e essa estratégia, tal como se passa no mundo das empresas e das organizações sociais. Quem não cresce e não se afirma, morre.

Portugal tem um enorme e riquíssimo ativo histórico, constituído pelo seu passado, que consubstancia uma incomensurável riqueza se for usado no presente e no estabelecimento dos seus objetivos futuros. Se se limitar a ser um ativo de contemplação, o seu valor decresce e quase desaparece.

Não podemos deitar a perder esse ativo que tanto custou aos nossos compatriotas antepassados a adquirir.

Nesta senda, e no plano do delineamento das alianças políticas unionistas que defendo, e sem prejuízo da importância primordial da confederação ibérica, Portugal deveria inscrever na agenda da sua atividade diplomática também o objetivo de conseguir promover a criação duma unidade política com Cabo Verde.

E porquê com Cabo Verde?

As razões são várias e todas favoráveis, para além da mais óbvia: a língua.

Em primeiro lugar porque um movimento unionista do tipo que preconizo, é sempre uma realidade complexa e prenhe de escolhos, pelo que deve ser levada a cabo com cautela e prudência, por etapas, de modo a que se possa sempre e em qualquer momento, corrigir a rota. Assim, esta lógica aconselha que o caminho se inicie por onde haja menos arestas e pontos de rutura. E aí Cabo Verde tem, relativamente a Portugal, uma posição quase tão próxima, cultural, histórica, genética e emocionalmente, como os Açores e a Madeira. O arquipélago era, aquando da sua descoberta (por volta de 1450) absolutamente deserto, tal como o eram Açores e Madeira, descobertos pouco antes, o que levou a um movimento de intensa colonização com portugueses continentais, com a única diferença da deslocação de populações africanas de modo mais intenso no caso cabo-verdiano, mas também presente nos dois outros casos insulares.

Ninguém negará que Cabo Verde tem com Portugal essa proximidade que refiro, sem dúvida a mais intensa de todo o antigo império português.

Os caboverdianos constituem a primeira comunidade estrangeira residente em Portugal, embora assim não conste das estatísticas atuais, pelo facto de não serem contabilizados os que possuem nacionalidade portuguesa, e os portugueses constituem a mais importante comunidade de estrangeiros residentes em Cabo Verde. E, entre ambos os povos, são milhões no contexto dos restantes países do mundo.

Em segundo lugar, Cabo Verde tem uma situação de grande proximidade à plataforma continental europeia e constitui uma unidade biogeográfica (Macaronésia) em conjunto com as Canárias, a Madeira e os Açores, sendo verdadeiramente (tal como as Canárias o são e a própria Madeira também) um arquipélago híbrido, pendendo entre a Europa e África.

Em terceiro lugar, a dimensão do país e o número de habitantes, pouco mais de meio milhão, tornam o resultado desta união uma unidade gerível por ambos os estados e facilmente admissível no contexto da integração europeia.

Por último, but not the least, uma união entre Cabo Verde e Portugal é querida por ambos os povos, que não são simplesmente irmãos: são consubstanciais entre si.

É claro que Portugal poderia ensaiar esta estratégia unionista com outros povos e países seus irmãos, como é o caso de Timor, S.Tomé, etc., e nenhum deles afasto, mas um movimento desta profundidade deve iniciar-se cautelosamente e as razões que enumerei justificam plenamente que se comece por aqui.

Regresso agora à questão dos ativos intangíveis gerados pela história.

Portugal gerou e construiu, ao longo de séculos, um património de infindável riqueza que não tem sabido rentabilizar, antes pelo contrário, que parece apostado em destruir. Contudo, embora esse património não se possa medir em termos de valor monetário, todos concordaremos que é duma enorme dimensão, não só material, mas também espiritual.

A história por vezes anda devagar. Hoje, e não ontem, as condições para esta união consentida entre estados soberanos, estão criadas. Os portugueses, estou certo, não se oporiam, se para tal fossem mobilizados e consultados, bem como o mesmo se passaria com os caboverdianos. Creio conhecer suficientemente ambos os povos para dizer o que digo. O problema compreensível desta união, poderia surgir do lado cabo-verdiano, traumatizado ainda pelo período colonial. Creio contudo que esse traumatismo está hoje ultrapassado e, aliás, os caboverdianos seriam os primeiros e mais imediatos beneficiados com esta união, a qual contudo, em obediência ao princípio da prudência que atrás enunciei, deveria assumir a forma confederal e permitir a saída, em qualquer momento, após referendo, de qualquer dos estados confederados.

O ingresso na União Europeia seria um forte argumento para convencer os caboverdianos.

A constituição desta união traria a ambos os países não só evidentes benefícios sinergéticos em termos económicos, como os colocaria na vanguarda do protagonismo político mundial, pelas melhores razões: o exemplo de unidades pacíficas, em contraposição às desuniões que grassam belicamente no palco universal.

Se Portugal é o mais africano dos países europeus, Cabo Verde é o mais europeu dos países africanos.

José Carmona

Em Santa Maria, Açores, em abril de 2016

 

 

 

 

 

O fim da partidocracia ou o advento duma democracia nova

“O homem está forçado a conquistar a sua liberdade”
M. Bakunin

 

As sociedades democráticas atuais estão esclerosadas nos seus sistemas políticos partidocráticos. Os modelos vigentes estão completamente desadaptados da realidade e agonizam às mãos da modernidade, das novas sociedades e das recentes tecnologias. Agonizam e estiolam, não só sem compreenderem o que se passa, mas também tentando perpetuar-se e autorreproduzirem-se numa vã tentativa de resistir mantendo o modelo da política velha, o modelo do século XIX, sem se aperceberem de que tudo o que os justificava ruiu à sua volta.

A revolução democrática está na rua e eles não dão por isso. O seu fim é já só uma questão de tempo, mas continuam o seu ritual, tal como a orquestra do Titanic se mantinha a tocar enquanto o navio se afundava no oceano.

O sistema de monopólio de partidos sobre os sistemas eleitorais é a política velha, mas os seus protagonistas não sabem o que fazer, e por isso continuam simplesmente a fazer o que sabem: tocar os instrumentos que se tocavam quando nasceram para a política.

A sociedade exige que o sistema partidocrático termine e que dê lugar a uma solução democrática integral que ponha fim ao domínio monopolista dos partidos.

Exige-se – e pratica-se já – uma nova democracia, baseada nos cidadãos, na sua individualidade, na consciência que cada um tem de si.

Se é verdade que os cidadãos se podem associar em partidos, é também verdade, tanto ou mais, que se podem associar no que quiserem, ou simplesmente em nada, para poderem participar no processo político, mormente no processo eleitoral.

E isto retira à política velha o seu protagonismo, o seu domínio sobre o processo e sobre o poder. E esse instinto os políticos velhos têm-no, tal como as classes dominantes perante uma revolução que não compreendem, mas que pressentem que as prejudicará. Foi assim na revolução francesa, foi assim na revolução soviética, é assim em todas as revoluções. Olhe-se hoje, na vizinha Espanha, para a patética resistência dum Rajoy politicamente moribundo que teima em fechar-se num mundo que já não existe.

Devemos exigir que se ponha rapidamente termo a esta agonia. Devemos exigir que se construa um novo modelo democrático, baseado no cidadão, e que permita que as candidaturas aos parlamentos sejam apresentadas por simples grupos de cidadãos, organizados em estruturas associativas ou não, sejam elas o que forem: sindicatos, igrejas, filarmónicas, clubes de futebol, partidos políticos ou grupos do Facebook. Todos podem propor, todos podem ser propostos, desde que tenham mais de 18 anos e não estejam declarados incapazes.

Este é o princípio básico.

Mas não o único.

Os candidatos a deputados populares devem ser apresentados por círculos pequenos (eventualmente até uninominais) e próximos dos seus cidadãos, perante quem devem responder em permanência, podendo ser destituídos em qualquer momento, verificado que esteja um procedimento de “impeachment” preestabelecido e que não dificulte a proposta de destituição.

O número de subscritores duma candidatura nunca deverá ser superior a 0,5 % do colégio do círculo respetivo e os círculos deverão ser reduzidos, relativamente ao que hoje se pratica.

Exemplificando: um círculo com 100.000 eleitores requereria 500 assinaturas para a apresentação duma candidatura e qualquer deputado, em qualquer momento, deveria ser passível de impugnação e imediata substituição, caso um número de eleitores significativo assim propusesse.

Por outro lado, em nada repugnaria que o número de deputados aumentasse, tornando mais representativo o processo democrático e permitindo a pequenas comunidades terem um peso proporcionalmente mais significativo na assembleia popular. O problema não é o número de deputados, mas a sua legitimação política e o método como são escrutinados. Pequenas comunidades autonomizadas, como as ilhas açoreanas, deverão, apesar do seu diminuto número de habitantes, ter uma representatividade proporcionalmente superior à duma grande capital como Lisboa.

Círculos pequenos e mais deputados, tornam a assembleia do povo mais representativa e os seus representantes mais próximos dos seus eleitores, logo mais facilmente escrutináveis.

A soberania é una e indivisível e consubstancial ao povo.

Acabar com o monopólio dos partidos sobre os sistemas eleitorais é acabar com a política velha e com os velhos políticos e é restituir aos povos a soberania que lhes pertence e que nunca lhes deveria ter sido sonegada.

É este o caminho da revolução democrática.

 

José Carmona

Em Lagos, Abril de 2016

 

 

 

 

 

A submissão dum povo através da dívida ou o fim da humilhação

“Um país não deveria aceitar demasiado capital estrangeiro porque põe em risco a sua soberania”

Thomas Piketty

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A dívida pública externa dos países mais frágeis (adiante se perceberá porque sublinho a palavra externa), como Portugal e a Grécia, entre muitos outros, é hoje um instrumento de submissão e de imposição dum modelo de economia, de tipo neoliberal, de capitalismo desbragado e de casino, que conduz àquilo a que todos assistimos neste tempo de caos mundial, à profunda desigualdade, ao controlo da economia por escassos punhados de pessoas, às guerras, etc.

A perpetuação do modelo só poderá ser feita se todos os modelos alternativos forem severamente rechaçados, como se viu no caso da insubmissão grega e na fúria revanchista dos “mercados” e dos seus próceres contra a ousadia do povo helénico.

Não tenhamos ilusões: o dinheiro é emprestado aos estados frágeis do mesmo modo que os “dealers” das drogas as subministram aos neófitos, facilitando o acesso, com o intuito de os viciar e, depois, controlá-los.

O mecanismo é o mesmo, mas a intenção é ainda muito mais complexa: o objetivo nem sequer é apenas o lucro imediato, mas sobretudo a criação duma situação perene de submissão e dependência, que permita a perpetuação do sistema.

A partir daí, como bem temos visto no nosso caso português deste orçamento de estado, tudo o que um povo decidir, deixa de estar decidido, se não for decidido como os “credores” quiserem.

A democracia terminou, sem terminar. Não se podia inventar melhor método para perpetuar o sistema.

Tudo isto já se sabe, já tem sido sobejamente apontado e comentado; não é esse o objetivo deste artigo. Esta introdução serve apenas para enquadrar o problema.

A dependência que refiro é causada pela dívida pública externa, e não pela dívida em geral (privada interna e externa e pública interna), tal como por exemplo numa família o problema de dependência dum ou mais dos seus membros não será provocado pela existência de uma dívida para com um outro membro da mesma família, mas sim pela dívida ao banco e pelas garantias associadas, que poderão levar à perda da casa, do salário ou do negócio.

Assim, como poderá um povo como o nosso, no atual estádio de desenvolvimento do processo histórico, e na conjuntura geopolítica em que nos encontramos, libertar-se deste jugo e permitir-se decidir o seu próprio destino?

Só há dois caminhos: pagar a dívida pública externa (com ou sem reestruturação) ou recusar-se a pagá-la.

Parece lapalissiano, mas não é.

A dívida pública interna e a dívida privada (bancos, empresas e famílias) externa e interna não causam qualquer problema de dependência ao estado português. Poderão causar problemas aos bancos, às empresas e às famílias, mas não ao estado, nem sequer reflexamente, ao nível desta abordagem, que trata de dependência soberana.

A recusa do pagamento, como aliás tantas vezes aconteceu na história, inclusive com Portugal, ou uma situação semelhante à recusa, como a que os gregos ensaiaram recentemente, terá como consequência aquilo a que assistimos na Grécia: o esmagamento e humilhação com natureza quase de genocídio, sem contemplações, de modo a dar o exemplo, tal como fazem as máfias quando querem atuar exemplarmente sobre um extorquido que recusou pagar.

O pagamento puro e simples, como recentemente fez a Islândia, retira obviamente os argumentos aos “mercados”, mas só é possível em muito poucos casos, designadamente num país que tem menos de metade dos habitantes da região do Alentejo, um PIB 30% superior e um elevado grau de patriotismo.

A situação preferida pelo capitalismo imperante é aquela que Portugal e tantos outros seguiram: submeter-se, humilhar-se, pedir perdão e, sobretudo, aceitar todos os ditames impostos, de chapéu na mão e joelhos no chão, venerador e obrigado, como o fez o governo de Passos Coelho.

E manter a “droga”, ou seja, os financiamentos e empréstimos, a juros altos, num círculo vicioso, cada vez mais asfixiante.

A recusa do pagamento, à maneira de Lenine e da Rússia do início da revolução soviética, não parece praticável no enquadramento histórico atual português. Significaria uma rutura que os portugueses, declaradamente, não querem.

O pagamento à islandesa é impossível.

Estamos então condenados à dependência e humilhação, cujo final poderá mesmo significar uma qualquer forma futura de protetorado ou “gestão” por estrangeiros?

Talvez não.

É a proposta que quero apresentar aqui hoje e que nunca vi discutida nestes infindáveis quilómetros de debates televisivos, académicos e jornalísticos da última meia dúzia de anos.

A proposta é simples: substituir dívida pública externa, por dívida pública interna.

Numa palavra, substituir dependência por independência.

Volto ao exemplo que dei há pouco: se, no seio duma família, um jovem casal que se encontra, por ter perdido o emprego, em situação de asfixiamento financeiro total, que o vai levar à perda da casa a favor do banco e até dum pequeno negócio que entretanto criou para resistir, pedir aos pais para lhes emprestarem o suficiente para saldar a dívida, deixa o casal de ficar numa situação de dependência externa, para ficar numa situação de independência externa, embora evidentemente com a obrigação de restituir aos pais o que lhes foi emprestado, mas já obviamente em condições completamente diferentes, ou seja, de dependência interna.

E como fazê-lo? Numa situação de emergência nacional, como é o atual caso português, todos deverão ser chamados a esse esforço, de modo proporcional, mas agravadamente para os que mais podem.

Quando, na crise de 1380, o condestável do reino de Portugal, S. Nuno de Santa Maria, na guerra pela independência do país, necessitou de todos para levar a cabo a campanha de defesa contra a agressão de Castela, houve confiscos, empréstimos forçados, incorporações à força e até execuções sumárias. Mas a guerra fez-se e foi vitoriosa. Alguém se lembrou de lhe chamar fascista? Não. Pelo contrário, foi desde sempre considerado um herói do povo (que sempre o considerou um santo) e do país, aliás o maior entre todos.

O momento é similar, salvas as devidas proporções e diferenças, entre as quais se encontra o facto de hoje não termos nenhuma liderança que se compare.

Todos os portugueses e todas as empresas a operarem em Portugal (embora aqui se pudesse ponderar a isenção das empresas de capital estrangeiro, de modo a proteger o investimento externo) poderiam e deveriam ser chamados a um empréstimo forçado de 10% do seu rendimento, o que significa cerca de 50€ mensais para os que apenas têm o salário mínimo, e o mesmo sucedendo com os lucros das empresas.

O produto deste empréstimo forçado seria obrigatoriamente empregue na amortização de dívida externa, em primeiro lugar a mais cara e de prazos mais curtos, e transformado em títulos de dívida, ou certificados de aforro, ou qualquer instrumento semelhante, rendendo juros à taxa a que estava a dívida amortizada e podendo esses títulos ser negociados, ou seja, podendo ser vendidos pelos seus detentores, podendo até criar-se um tipo de mercado secundário próprio que permitisse a sua cotação pública permanente. Os títulos teriam maturidades longas, não inferiores a 10 anos, mas podendo ser maiores, e poderiam ser sempre reembolsados antecipadamente, devendo mesmo sê-lo desde que houvesse um qualquer tipo predefinido de excedentes orçamentais.

As contas são impressionantes: há cerca de 5 milhões de portugueses empregados, com um vencimento médio de cerca de mil euros. Só aqui o empréstimo forçado seria de cerca de 500 milhões por mês, o que multiplicado por catorze dá cerca de 7 mil milhões anuais.

Este mesmo empréstimo deveria ser aplicável a pensionistas e a qualquer pessoa com qualquer tipo de rendimentos, desde que superiores ao salário mínimo. Só os pensionistas com pensões de valor igual ou superior ao salário mínimo, são cerca de 1 milhão, com um valor médio mensal de rendimento de perto de mil euros. A contribuição deste segmento significaria cerca de mais mil e quinhentos milhões por ano, ficando isentos do empréstimo forçado os que tivessem um rendimento inferior ao salário mínimo nacional.

Se a isto juntarmos os lucros das empresas o valor subiria muito mais. Lembremo-nos apenas das centenas de milhões de lucros gerados por bancos e grandes empresas a operarem em Portugal, independentemente de cá terem a sede ou não. Recordemos que só os lucros das 1000 maiores empresas nacionais, superam os 5 mil milhões de euros anuais, pelo que a contribuição deste segmento seria de cerca de 500 milhões de euros.

Acrescentemos ainda todo o leque de outro tipo de rendimentos não referidos, como rendimentos de capital, de patrimónios imobiliários, de prémios de jogo, etc., e ter-se-á uma ideia da dimensão da proposta.

Muito provavelmente, embora não disponha de contas certas, este valor seria superior a 15 mil milhões anuais.

A dívida pública externa do estado português é de cerca de 160 mil milhões de euros, em termos brutos. E não precisaria de ser toda paga, evidentemente: se a dívida pública externa portuguesa se situar em valores inferiores a metade dos atuais, a dependência de credores e “mercados” será inexistente.

Se esta medida for acompanhada por outras, designadamente a reestruturação da dívida pública e, sobretudo – acima de tudo – a redução da despesa pública e a criação de excedentes orçamentais, a nossa situação de humilhação, protetorado e dependência seria resolvida em meia dúzia de anos. O sacrifício é perfeitamente suportável e a compensação incomensurável. Junte-se ainda um programa atrativo de captação interna de empréstimos voluntários, do tipo dos certificados de aforro ou similar, e a rapidez da substituição acelerará.

É claro que esta proposta não resolve o problema da dívida: limita-se a transformar dívida externa em dívida interna. Mas imaginem a pressão que os portugueses passarão a fazer sobre os seus governos com vista à redução da despesa pública e à adoção de políticas de promoção do crescimento económico, de aumento da produtividade nacional, de incremento do investimento externo, de facilitação de exportações e restrição de importações, etc.

É que passarão eles a ser os credores diretos!

Uma medida deste tipo acarretará necessariamente a criminalização da subtração de rendimentos, de modo a escapar ao empréstimo forçado, com penas pesadas de prisão efetiva, o que por sua vez diminuiria a evasão fiscal e aumentaria as contribuições para a segurança social.

E não se venha dizer que esta medida seria inconstitucional: não é e, se fosse, que se mude a constituição.

Uma medida deste tipo é muito mais aceite pela comunidade, quer pelo seu conteúdo patriótico, quer porque ninguém perde dinheiro: antes pelo contrário, ganham juros a taxas interessantes e poupam forçadamente, quer para si próprios, quer para os seus descendentes, assegurando ainda por cima a independência nacional. Além disso, poderiam optar por receber anualmente os juros ou incorporá-los, aumentando a poupança e, em caso de necessidade, poderiam vender os títulos. Na atual situação do mercado financeiro, em que as taxas de remuneração dos depósitos são nulas, uma medida deste tipo, com taxas bem superiores, até seria atrativa para a generalidade das pessoas.

O que custa muito a aceitar são mais aumentos de impostos, cujo destino é tantas vezes duvidoso.

Mas não nos admiremos: se muitas medidas destas vierem a ser adotadas, os “mercados” mudarão de política e acabarão por encontrar um qualquer comodoro Perry que ponha os canhões a trabalhar para forçar os países a… pedirem emprestado!, tal como aquele forçou o Japão a fazer comércio, em meados do séc. XIX.

O único óbice a uma proposta deste tipo seria a secagem de liquidez que provocaria internamente, com a consequente diminuição de investimento e redução da procura interna. Mas este óbice o que é, comparado com a sua outra face, a independência financeira (e política) nacional e o fim da humilhação a que temos estado sujeitos?

Para além de que pode ser colmatado com um aumento do investimento estrangeiro e com o crescimento da produtividade nacional e com a adoção de medidas políticas que direcionem a redução da procura para os bens importados, designadamente através de fortes campanhas de apelo à compra de produtos nacionais em substituição dos estrangeiros e/ou de aumento do tempo médio de utilização dos bens sem incorporação nacional, como os automóveis. O conjunto de medidas deste tipo é infindável e só depende em muitos casos da imaginação e da vontade política: o terreno para a sua aceitação pelos portugueses estaria naturalmente preparado pela situação de emergência nacional e pela implementação dos empréstimos forçados. Pense-se ainda que uma cura de procura interna, sobretudo direcionada para os bens não produzidos em Portugal, tem um imediato efeito na redução das importações (dado que Portugal tem um grave problema estrutural de oferta), o que, se for gerido – que nunca tem sido – com um programa de captação do investimento externo e de promoção da produção nacional de bens transacionáveis, dirigida àqueles de maior consumo interno, de modo a substituir importações, contribui ainda para o equilíbrio das contas externas e para a redução da dívida privada.

Atente-se apenas num exemplo: o das pescas e da construção naval. A política criminosa de destruição duma atividade económica natural e tradicional do nosso país, que foi intencionalmente perseguida pelos nossos governos, com efeitos catastróficos na economia nacional, em benefício de economias externas, a mando dos mesmos “mercados e credores”, pode ser ainda invertida se o for rapidamente e enquanto subsiste o “know-how” para o fazer, o que não demorará muito mais, uma vez que os homens que o detêm, vão evidentemente desaparecendo sem o passar às gerações seguintes. Portugal tem uma das maiores ZEE do mundo, tem uma tradição ancestral de pesca e economia do mar e votou esse seu enorme capital à inércia improdutiva da reforma!

Francamente, já é tempo de acabar com esta submissão e com as políticas e os políticos seus causadores.

José Carmona, Lagos, 2016